Nenhum festival nos obriga a correr tanto quanto o Mexefest, e devia haver uma lei que o proibisse logo a seguir ao jantar. Mas quem corre por gosto não cansa. Nova edição, nova azáfama, nova passeata pela Avenida da Liberdade à procura de qualquer coisa que nos desperte o interesse, para além do chocolate quente de borla. O interesse começou logo com os Juba, quarteto jovem e alternativo que apanhamos já com quinze minutos de atraso e que deverá ter todas as influências certas, pois é difícil ficar indiferente perante a descarga melódica e a energia que apresentam em palco, dedicando "Victoria Creeps", uma das canções do disco recém-editado, "ao público que gosta de ir a festivais" (cue applause). Atravessamos a estrada e apanhamos Sequin às turras com alguns problemas técnicos que não impediram, uma vez mais, de nos regozijarmos com a voz de Ana Miró, cruzamento entre Beth Gibbons e o fantástico Integration de LA Vampires e Maria Minerva. Finalmente, ainda em modo aquecimento, houve espaço para descer até ao Rossio e apanhar JP Simões, que havia substituído John Wizards, a cantar "La Javanaise" (Gainsbourg) e "Bem Querer" (Chico Buarque), enquanto a primeira e única cerveja da noite desaparecia esófago abaixo - porque há outras coisas a valer 2€ com maior prioridade.
Prioridade essa que foi dada pela grande maioria do público aos dois nomes que actuavam no Coliseu, Savages e Woodkid. As primeiras, que haviam deixado em polvorosa muitos dos que foram ao Primavera Sound, não desiludiram: continuam a soar a Joy Division, a trazer à boca a expressão "guitarras angulares", a tentar ser uma espécie de Cocteau Twins ou até mesmo Elastica mas sem qualquer tipo de talento ou originalidade que lhes valha - os fãs adoram, evidentemente, e quem somos nós para falar mal? Uns grandes estupores, claro. O quarteto britânico pode continuar a prosseguir a sua demanda de repescar "o som dos oitentas" e a levar a miudagem (e a velharia) saltitante aos seus concertos porque estão a fazer um bom trabalho nesse campo. Não precisa de nós nem do nosso ódio abjecto para nada.
Quanto aos Wavves, agora quarteto, regressaram à capital pela terceira vez para um concerto morno mas que ainda assim proporcionou bons momentos, a saber: a corda de uma guitarra partida ainda nem a primeira canção havia começado (très punk), a invasão de palco por parte de um conhecido ilustrador português (oi Rudolfo, Lisboa continua a não aguentar a tua piça), a invasão de palco por parte de uma fã menos dada à vergonha, os quatro ou cinco crowdsurfers e as canções como "Post Acid", "Green Eyes", "Super Soaker", "King Of The Beach" ou "Demon To Lean On", todas elas retiradas dos dois discos que fazem a segunda vida de Nathan Williams depois da auto-destruição em Barcelona e da viral "So Bored", que foi pedida mas não executada. E pelo barulho imenso que saía daquelas cordas, claro. Isto é rock e o rock vale sempre a pena.
Voltando ao Coliseu e, agora sim, a Woodkid: simplesmente não há palavras que o descrevam. Entramos ali, desconhecedores, à espera de uma folk choninhas, a julgar pelas descrições que havíamos lido ou obtido de terceiros sem sequer ter picado, e somos brindados com uma secção de sopro, três bateristas com formação militar, um teclado que nos faz sentir muitas, mas muitas coisas e um jovem que parece saído de um qualquer gueto ou filme cliché sobre hip-hop mas que faz esta música maravilhosa, sublime, banda-sonora épica de filmes por acontecer - e, o que é melhor, que a trata precisamente como se fora hip-hop ou tivesse essa energia do hip-hop; pense-se nos xx com uma orquestra a acompanhá-los ou qualquer outra referência mais próxima e nada estará sequer perto daquilo que Woodkid é capaz de fazer quando lhe dão espaço para rebentar. Que é algo, igualmente, que o Coliseu ia fazendo, tal era a enchente para ver este senhor francês com disco de estreia editado este ano e que se ia movendo ao mesmo tempo que os braços deste, que entoava as melodias chegando até a pasmar o próprio autor, que acabou a noite em completa apoteose e euforia e a pedir mais, muito mais. A Wikipedia chama-lhe neofolk e de facto há ali algum Death in June misturado com o sabor pop da temporada, de forma a que o público em geral consiga deitar-lhe a mão sem temer o fantasma fascista ou algo que o valha. Mas é também superior a qualquer rotulagem. Tanto, que a dada altura Yoann Lemoine (é este o seu verdadeiro nome) nos pergunta se estamos preparados para dançar e de imediato transforma o espaço lisboeta numa rave minimal que não soaria estranha numa cassete com os êxitos dos Safri Duo - e isto é um elogio, atenção. Já escrevemos maravilhoso e sublime. Falta soberbo, mágico, incrível, ou o Priberam inteiro. Ou muito nos enganamos ou estão aqui os novos The National, Tindersticks, Alt-J, xx ou qualquer outra banda de culto que encha salas por cá. Nisto não nos enganamos certamente: podem fechar 2013 em matéria de concertos que não há mais nada para se ver aqui.O festival assim o convida, daí que o dia de hoje tenha sido passado a correr, sem encontrarmos o chocolate quente ou as castanhas que tanto desejávamos, ou sem sequer regressar à ginja para aliviar o desgosto futebolístico; houve apenas tempo, antes de nos despedirmos da edição deste ano do Vodafone Mexefest, para apanharmos os primeiros minutos de Cícero, depois de um ligeiro atraso por problemas técnicos, que apresentou ao vivo as suas canções com sabor a Brasil (e alguma poeira rock), juntamente com MoMo e Wado e acompanhado por Bernardo Barata e Fred Ferreira.
De um lado do Atlântico para o outro, ou de um lado da avenida para o seu oposto, apanhamos Gisela João a cantar para uma plateia bem composta na Sociedade de Geografia e perguntamo-nos: como é que é possível que desta pequena princesa minhota saia uma voz tão poderosa? Cantou e encantou; até a alma mais avessa ao fado encontrará em Gisela João um bálsamo auditivo, ela que até teve tempo para cantar versos escritos por Capicua (após pedir desculpa por não falar muito: os gajos cortam-me o som...) e para uma versão fabulosa de "Os Vampiros". Se não foi o melhor concerto do Mexefest foi sem dúvida o melhor concerto de um português no Mexefest.
Os Daughter não aquecem nem arrefecem - guitarrinhas, electrónicazinha, miudinhas que não sabem melhor do que isto a guinchar de alegria e uma bonomia tremenda para quem já está acostumado a outras paisagens rífficas - e Silva fechou-nos a noite no meio de enormes problemas de som que não deixaram que a música do brasileiro fosse devidamente apreciada pelos muitos presentes na estação do Rossio, se por culpa de algum hype não sabemos. Com o castelo de São Jorge como pano de fundo, Silva fez o melhor que pôde para agradar mas as colunas pura e simplesmente não deixaram. Talvez numa próxima ocasião possa mostrar na capital (ele que andou a percorrer o país) tudo aquilo que sabe fazer. Para já despedimo-nos não só dele como do festival, culpa dos transportes ou falta deles, mas prometemos regressar para o ano.
Paulo Cecílio pauloandrececilio@gmail.com 01/12/2013