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Amplifest
Porto
19-20/10/2013


Tudo é de facto melhor no Porto, porque a cidade até chega a fintar a meteorologia: depois de uma semana de previsões de chuvas fortes, a tarde espraia-se de um sol tímido mas agradável e o Hard Club enche-se progressivamente de alumni da universidade metálica para nova edição do Amplifest, com os Deafheaven, Chelsea Wolfe e Russian Circles enquanto catedráticos do seu cartaz, cancelada que foi a actuação de Pharmakon (as melhoras, Margaret). O que a ressaca do dia zero permitiu avaliar encontra-se nas linhas seguintes, escritas desapressadamente antes sequer de os Macumbas subirem ao palco da sala dois. Mas apostamos que foi altamente.

Os Zatokrev chegam-nos da Suíça, tão neutros quanto as fronteiras do seu país: um sludge divertido e propício às dores de pescoço se as de cabeça não latejassem tão mais, e a hora fosse ligeiramente mais propícia ao seu tipo de sonoridade. Ainda assim, entre grunhos imperceptíveis de "liberdade" e headbanging colectivo e quase tão sincronizado como uma equipa de natação, abriram a terceira edição do festival Portuense da melhor maneira. Pena que não exista muito mais para contar.

Os Year Of No Light poderiam ser a banda sonora de um célebre campeonato conquistado no estádio da Luz, e é sob os efeitos do negrume que apresentam na sala principal o seu pós-rock-pós-metal-pá, são guitarras e não há voz que havia levado à cidade inúmeros fãs acérrimos. Poderíamos compará-los com os nobres PAUS, já que também eles se apresentam munidos de duas baterias não-siamesas, um baixo maior que algumas mães e um teclado que nos fazia sentir alguma coisa (nomeadamente riso) de cada vez que o seu ocupante se entretinha a saracotear o corpo. Se são causadores de alguma sonolência nos momentos mais ternos, ao colocarem velocidade assumem-se como uma boa aposta.

Carla Bozulich, a.k.a. Evangelista, não permitiu que a apanhássemos a praticar minutos antes do seu concerto. Talvez tenha sido pelo melhor, dado o morno que foi - um blues arranhando vertigem que não se sobrepôs ao palrear incessante de quem preferia o gosto de um bom fino ao dos seus lábios. No final, contudo, Carla sai do palco e desata a abraçar toda a gente. Talvez a pedir desculpa.

Os Deafheaven são horrendos. Bem sabemos que eram possivelmente o grande nome deste cartaz, pensando inclusive no público que encheu a sala principal, mas o que é certo é que esta mistura de black metal com momentos menos grossos e mais ambientais não é assim tão bom e... saberão o resto, certamente, ainda que no bloco de notas uma enorme e bonita fã tenha escrevinhado que é melhor que 90% (das merdas que ouvimos). Nos seus melhores momentos, os Deafheaven são uns Mono azeiteirados com a adição de blastbeats ou uns Linda Martini para metaleiros: nos piores, relembram a posição que os Dimmu Borgir tomaram no seio da consciência trve. Os noruegueses enterraram o género; os Deafheaven construíram um centro comercial sobre o cemitério. Valeu por se ter ouvido Smiths no PA minutos antes da sua actuação.

Foi aos Catacombe que coube talvez o melhor concerto que por hoje se viu, até por tudo em redor - banda surpresa, disco novo, convidadas especiais que disfarçaram o nervosismo cerrando os olhos. A banda de Vale de Cambra não se deixou intimidar pelo grito mordaz de "QUEM SÃO VOCÊS" (convenhamos, era esperado) e ofereceu a quem teve o mínimo de paciência um óptimo concerto com travo pós-rock que deixa antever boas coisas desse novo registo - e contaram com a participação especial de uma certa e determinada fotógrafa famosa na Internet e arredores. Pouco depois, Uncle Acid primeiro e Macumbas depois, fechariam o primeiro dia."Fui ao Amplifest e trouxe de lá uma febre de 38 graus" podia ser um artigo bonito, mas não é mais do que a verdade - love will damage your health, já diziam os Télépopmusik, e o whisky que se sobrepôs aos Aluk Todolo também o fará. O Amplifest 2013 terminou, não da melhor maneira porque Pharmakon cancelou, mas de uma maneira a que possamos, ainda no Hard Club, soltar uma lagriminha pela sua passagem. Para o ano há mais, claro. Lá estaremos se as condições o permitirem.

Antes de afogarmos as mágoas lembremos a hibridização Black Bombaim + La La La Ressonance, que esteve muito melhor engrenada que no concerto do Milhões de Festa; notou-se uma maior química, um entrosamento completo, e houve igualmente uma dose simples de ajavardanço bom que nos permite dizer que, assim sim, um disco em conjunto é capaz de resultar numa coisa muito bonita. Pela que às três da tarde ainda pouca gente quisesse saber.

Ah, mas nós queríamos afogar as mágoas, não era? Chelsea Wolfe não deixou. Vestida de branco virginal, voz tímida ao dirigir-se ao público e assustadoramente grande quando cantava as canções do seu novo Pain Is Beauty, a norte-americana proporcionou o melhor concerto do Amplifest com baladas sobre as tormentas do amor - ou algo do género, igualmente depressivo e verdadeiro - sob uma camada de algum noise a reluzir no negro da sala um. Talvez fosse do espírito maltratado ou do quanto as bebidas espirituosas nos maltrataram, mas Chelsea bateu-nos forte. Que volte depressa, depressa.

Os Body/Head de Kim Gordon assumiam-se como um dos grandes nomes desta edição do Amplifest, mas defraudaram todas as expectativas. Não negamos ser fãs de uma boa Glenn Brancanada, mas o feedback asmático e sem conteúdo que saía das guitarras de Kim e Bill Nace não fazia por nós o que o autor de Lesson no. 1 fez da primeira vez que o ouvimos, ou fez sequer fazer esquecer os Sonic Youth. Mereceram dez minutos da nossa atenção antes que caíssemos no sono.

Finalmente, os Russian Circles fecharam o festival com uma actuação para a maior enchente que se viu naqueles dois dias, entregando uma chapada de mão fechada a todos quantos ainda se aguentavam nas pernas por força do riff e da pujança rítmica do seu baterista. O mote era Memorial, quinto disco de originais editado este ano pela Sargeant House, e houve até espaço para uma pequena participação de Chelsea Wolfe no tema-título. Óptimo concerto que deu origem à saudade: nunca mais é Outubro de 2014. Se este ambiente continuar o amplifestão mínimo está garantido.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
23/10/2013