bodyspace.net


Julia Holter
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
22-/07/2013


Era suposto ser a noite de "Loud City Song" (Domino, 2013), o novo álbum de Julia Holter, tão novo que ainda não chegou às lojas de discos. Para escutar em primeira mão, ao vivo, na Galeria Zé dos Bois, noite quente de Verão, a 22 de Julho, o ansiado regresso de Holter a Lisboa, cerca de 13 meses após a mitológica estreia na Igreja de St. George, quando os ângulos mais subtis de "Tragedy" (Leaving Records, 2011) e "Ekstasis" (Rvng Intl., 2012) ainda não tinham sido condignamente explorados. No entanto, o essencial do concerto acabou por se desenvolver em torno dos dois discos anteriores, sobretudo "Ekstasis", polvilhado por duas ou três canções novas de "Loud City Song", a despertar a curiosidade, mas sem desvendar (inteiramente) o mistério.

© Luís Martins

Acompanhada em palco por quatro exímios instrumentistas - Christopher Votek no violoncelo, Andrew Tholl no violino, Corey Fogel na bateria e Daniel Meyer no saxofone -, a voz de Holter nem sempre foi o centro das atenções, ora submergindo ora emergindo ao longo das canções, interpretadas com a tonalidade jazzística que deverá caracterizar "Loud City Song". Ou seja, a presença dos instrumentistas, com o figurino e os arranjos do novo disco, resultaram em mais um concerto singular: não tanto pelas duas ou três canções novas, até porque já conhecíamos a insondável beleza sonora de "World" (faixa de abertura do novo disco, não do concerto, o qual principiou, sintomaticamente, com a dolência poética de "This is Ekstasis"), mas sobretudo pela reconfiguração das canções de "Tragedy" e "Ekstasis" de acordo com as coordenadas de "Loud City Song", entre o jazz vocal, a ambiência de clube nocturno e a dimensão lírica de Holter.

Ao contrário da improvisação do jazz, Holter não se lança num trapézio sem rede. "Fico curiosa a pensar o que aconteceria se alguém me pusesse num estúdio sem ter composto antecipadamente, tend de escrever as canções e gravá-las de imediato. Talvez fosse interessante, mas soa-me assustador", confessou em entrevista recente. Em estúdio como em palco, há sempre um conceito fundador no processo de construção sonora de Holter. "Loud City Song" parte da fixação numa sequência do filme "Gigi" (1958) de Vincente Minnelli. "Tragedy" e "Ekstasis" também resultam de citações, metáforas, referências.

© Luís Martins

Compô-los em simultâneo: o primeiro com base na tragédia clássica grega ”Hipólito”, de Eurípedes, obedecendo à estrutura formal (introdução, interlúdio e “finale”) da peça; o segundo mais livremente, ou sem um guião pré-estabelecido. “Eu estava a escrever os dois álbuns ao mesmo tempo. Portanto, em ‘Tragedy’ divertia-me com a história que estava a construir e, depois, ‘Ekstasis’ era algo de libertador, não tinha uma história particular, compunha apenas canções individuais. Pelo que foi agradável ter dois projectos diferentes, podia divertir-me através de duas abordagens diferentes” (entrevista à “Fact Magazine”).

© Luís Martins

Na mesma entrevista em que Julia Holter se irrita com uma pergunta sobre o facto de ter estudado composição numa escola. “Acho que a pessoa que escreveu a minha biografia, quem quer que tenha sido, referiu isso porque há quem tenha essa ideia de que há todo um pensamento formal inerente ao meu trabalho. Para mim soa apenas a música pop, o que eu faço”. Holter que também estudou piano clássico, e música electrónica no California Institute of the Arts. Daí, talvez, a oscilação entre música erudita e música popular, uma característica que já se prenunciava em “Tragedy” e acaba por ser exponenciada em “Ekstasis”, cujas faixas partem de estruturas clássicas que se transmutam em texturas synth-pop, ou explanações psych-folk, por entre espectros jazzísticos, vocalizações atmosféricas e demais ruínas circulares (Borges, após Eurípedes).

Apontamento final: o sentido de humor de Holter, tão subtil e auto-irónico quanto snob e afectado. Uma personagem muito interessante, detentora de um talento invulgar. Mas faça-se justiça: os momentos mais brilhantes da noite de 22 de Julho deveram-se, sobretudo, à destreza e capacidade de superação dos instrumentistas. Aguardamos pelo lançamento do disco, na segunda quinzena de Agosto, para esclarecer estas e outras dúvidas.

Gustavo Sampaio
gsampaio@hotmail.com
30/07/2013