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Milhões de Festa 2013
Barcelos
24-28/07/2013


Dia -1

Há algo no ar. Não sei se do (relativamente) pior tempo, se dos milhões de feridas por sarar ou do cansaço originado por horas de viagem com tendas e mochilas e artifícios vários às costas, mas Barcelos não parece este ano tão viva quanto nos anteriores. A culpa é provavelmente minha, claro, mas existem os amigos que se encontram de meses a meses, a candura e hospitalidade das famílias de Rendelhe e megafones prontos a disparar saraivada atrás de saraivada dos versos da "Get Lucky" para fazer esquecer qualquer maleita que assole quem chega à cidade por estes dias. Existe o álcool, o vício cada vez maior em tabaco e um portátil onde escrever o que quer que me venha à cabeça. Existirão os concertos - neste dia, dito menos um mas que eu encaro como o verdadeiro dia zero, os enormes da Coronado, a quem minto descaradamente sempre que me refiro a eles como "execráveis" numa private joke menos maliciosa do que aquilo que parece, organizaram uma mini-festa no mítico Xispes (ainda não foi desta que comi um panadão) com a presença dos compatriotas SAUR e dos Balão Dirigível, terminada demasiado cedo devido à presença da polícia; mas talvez seja a música que menos importa até chegar segunda-feira e voltar desolado para o sul. Tal como no ano passado, escrevo estas linhas no Xano, aproveitando o wi-fi. Tal como no ano passado, espero que acabe tudo bem. Como espero sempre. São 18h08 e Tamar Aphek já estará a actuar no Palco Taina, mas ainda é cedo para um pouco de música. Amanhã voltarei para escrever essencialmente sobre o que vi e ouvi. Eis o Milhões de Festa 2013: a oportunidade para renascer.
Dia 0

Então é assim: tudo em Barcelos, parecendo que não, é estupidamente perto. Do campismo até ao apartamento alugado por um certo grupo de trolls (e ocasionais DJs) era só um saltinho, mas quem não conhece a cidade irá invariavelmente pagar a um taxista para o transportar durante dois minutos e meio (fiquei com tanta pena que lhe dei uma nota de 5€. Sou tão boa pessoa). Banho tomado é hora de escrever, almoçar, beber o fino da praxe e seguir para o Palco Taina, onde os Phase se preparavam para um set de electrónica pesada a que pouca gente quis assistir nos lugares da frente, isto antes dos Canzana trazerem algumas mais para destilar raiva free e ainda chamarem os Cangarra para fazerem parte de uma jam ruidosa que, até ver, é o segundo melhor concerto do festival - nem o sistema de rega que de repente se ligou por detrás do palco serviu para apagar o incêndio. Puro derrame sónico e mental, o que quer que lhe queiram chamar. Os Killing Frost não nos puxam - quer dizer, puxaram-nos para ir jantar a um sítio maravilhoso com esplanada onde um belíssimo prato de perú com cogumelos custava apenas 6€ - mas os Spacin' levam-nos a abanar a anca e as cabeças com a sua esquizofrenia, desta feita muito mais psych e com uma baterista a encarnar o melhor espírito de Maureen Tucker (isto é, quando esta era uma das peças dos Velvet Underground e não apenas uma republicana de merda). Os Holocausto Canibal, que com certeza serão pessoas que gostam muito das suas mãezinhas, trouxeram o death metal e o crowdsurf até Barcelos, algo que já faltava e a que o ruído ajudou, juntamente com as letras altamente poéticas sobre homens que fazem sexo com motosserras ou galerias de fetos pregados no Tate ou algo assim do género (eu sei lá, é death). Os Claiana devolveram algum ritmo ao recinto enquanto eu ia ao campismo ver se me tinham roubado, e os maravilhosos Sabre actuaram para uma primeira fila repleta de gente oriunda das caves mais negras da Internet, armadas de megafone e gin, que se deliciaram com a electrónica cósmica oferecida pelo duo, cuja única falha foram na verdade duas - não tocarem a remix da "Push The Feeling On" e não levarem ninguém a tirar a roupa. Mas já que um chapéu com formato de panda permitiu fotos tiradas com desconhecidas, a pedido delas ressalve-se, acabou tudo bem. Depois os DJs da casa ainda estiveram para fazer a festa e apanhar as canas, mas como nunca se dorme muito bem numa tenda havia que abalar cedo. Sexta-feira começa o festival à séria.Dia Um

Cantavam os horrendos Papa Topo: el verano ya llegó. Por estes dias em Barcelos não há muito de verão, mas há Milhões de Festa e milhões de mini-festas a acontecer por todos os cantos da cidade minhota, caso por exemplo dos concertos ligados ao Red Bull City Gang, que proporcionaram um pouco de música depois de se ter abandonado a piscina porque os JUBA não davam sinais de vida. Findas as hostilidades por parte dos Okkur e dos Repressão Caótica, é tempo de descer até ao recinto para ver de perto Mikal Cronin, que, aparentemente, fez um disco sobre amores e desamores. O que é sempre bonito.

Antes de Cronin os Papir encheram o recinto de qualquer coisa jammy e psicadélica para o qual não tive pachorra porque primeiro havia que verificar as novas condições da zona de imprensa do Milhões de Festa (tá fixe). No Vice, o norte-americano disse ao público tudo aquilo que eu gostava de dizer a uma mulher, por entre guitarradas grungy e ruído muito que mereceu cada salva de palmas com que foi agraciado. Magnífico concerto naquela que foi a sua estreia, apadrinhado por um grito prematuro de brita! (provavelmente proveniente de alguém que não sabia que os Quelle Dead já haviam tocado), ao qual Mikel Cronin correspondeu com canções e energia. Bonitas canções e pico máximo de energia. Que volte depressa que ainda não ouvi o disco como deve ser.

Se Jacco Gardner foi um pouco choninhas até para donos de editoras em cassete, os Black Bombaim e os La La La Ressonance devolveram um pouco de jarda ao festival, unindo esforços naquele que foi um concerto com os seus bons e médios momentos; entre riqueza soft e caos sonoro, os oito barcelenses estiveram no seu melhor quando enveredaram por terrenos mais barulhentos, sendo que se estava à espera de algo mais libertador - a previsibilidade passou, infelizmente, por boa parte do concerto. No entanto, e apesar do seu final abrupto, aquela última composição não deixou espaço para dúvidas quanto ao poderio que desta colaboração pode advir - há já quem peça a edição em disco. Entretanto, Austra passeia pop chatinha pelo palco principal, destinada a vocalistas de bandas de metal e não gente sem paciência.

Depois do kraut dos Camera, os Ufomammut fecharam o palco principal com muito peso e as canções de Oro, disco duplo editado no ano passado. Após ter perdido a sua passagem pelo Amplifest 2012 (a paixão futebolística falou mais alto nessa noite), não tive outro remédio que não enfiar-me no meio da audiência metaleira bem perto das grades, a tempo de ver um jovem falecer devido a álcool ou outras substâncias, não acreditando de todo que tenha sido por culpa dos italianos - engraçados q.b., mas aborrecidos ao passar a quinta malha. Ainda assim, deu para algum headbanging e corninhos no ar. Ainda haveria Otto Von Schirach e White Haus mas o dia seguinte já chamava.Dia Dois

Tinha um texto fantástico sobre o dia de hoje, mas uma fotógrafa de nome Raquel Silva fez o favor de mo arruinar. Assim sendo, eis aquilo de que me lembro:

Quem não viu, visse. A Gin Party Sound System deu uma actuação fantástica num dos afters do Milhões de Festa, nomeadamente no Xispes, levando à loucura centenas e centenas de pessoas com o seu set eclético (é mentira: só lá estávamos nós e só passámos merda). Na piscina, depois de alguma chuva que caiu durante a manhã, os Surya Exp Duo apresentaram a sua sonoridade kösmiche recorrendo a ruídos vários, uma guitarra sem trastos e um theremin, num bom concerto que ainda assim não levou muita gente a sair da água. Do outro lado, os 10 000 Russos descarregaram voltagem atrás de voltagem, aquela que já lhes conhecíamos do EP, fuzz no máximo e bateria minimal como se pede (nem precisa de mais), seguindo-se os Dreamweapon, cujo rock vai igualmente buscar ao psicadelismo via Spacemen 3 e ainda ao kraut dos Can (aquela secção rítmica, ui).

Os HHY & The Macumbas trouxeram uma vertente dubbástica frita (ler: uma enorme e deliciosa confusão do caraças) ao palco principal já o sol se começava a pôr, sendo que da sala de imprensa me pareceu um concerto fantástico mas longe de mim ir socializar; já os Process Of Jarda Guilt puxaram-me até ao palco secundário através da gravidade exercida pelo seu peso - riffs apocalípticos, ferocidade no alto e um enorme concerto de metal (ou, o som de uma boca a morder-nos lentamente, como exemplificado pela t-shirt de Swans que envergava o vocalista), arruinando o meu pescoço já dorido do escaldão de ontem. Voltei a ter quinze anos e a gostar de metal.

Os ZA! bem podem dizer que são de Barcelona, mas nós tendemos a crer que são alienígenas; a manta de retalhos em que consiste a sua música não nos deixa espaço para acreditar noutra coisa senão que habitam um planeta longínquo e fértil de ideias e de loucura (e de ideias loucas) com a qual fazem a festa e apanham as canas. Como não haveria Milhões sem alguém a tocar no meio do público, fizeram-nos esse favor ao início, do chão sacando o ritmo e do trompete marcando presença; do metal ao punk ao afrobeat a dada a sabe-se lá que mais, é impossível caracterizar concretamente aquilo que fazem senão assim: : D. Os Eyehategod subiriam ao palco principal pouquíssimo depois, entre rumores de que haviam pedido heroína para tocarem decentemente e após se terem entretido com um famoso megafone, enchendo de sludge e proporcionando aos muitos metaleiros uma razão para virem até Barcelos. O último dia é já amanhã e as saudades começam a bater forte.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
27/07/2013
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