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Mykki Blanco + Physical Therapy
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
6-/09/2012


Portugal não é um país com uma cultura enraizada de concertos de rap. Exceptuando a realidade nacional, em que alguns nomes de créditos mais ou menos firmados vão saltando para fora dos subúrbios – onde impera ainda o amadorismo – para aterrarem em salas e eventos de maior relevância, a presença de rappers internacionais cinge-se quase apenas àqueles que conseguem uma slot em algum festival ou aos adiamentos consecutivos do 50 Cent. Não deixa de ser por isso, desde logo, uma ideia louvável a da Galeria Zé dos Bois de apostar intermitentemente em concertos de rap mesmo no coração de Lisboa e num espaço amigável para uma classe média para quem a street tem uma existência virtual. Visão conscientemente limitadora, mas suficientemente próxima da realidade para ter algum fundamento na relação entre o artista e o público que ouve na era da informação – ou passámos já esse ponto? Afinal de contas, tentar englobar todo o espectro do género ao abrigo de uma meia dúzia de denominadores comuns – e básicos – é ideia estúpida, mas serve neste caso para um mínimo de contextualização.

© Susana Pomba

Passando da visão geral possível (?) para uma esfera mais particular, tenhamos em conta as características da ZDB. Como tal, e embora não o possamos cingir somente às músicas mais exploratórias, não seria espectável ver no Aquário estrelas como o Young Jeezy – o que também não faria grande sentido em 2012, onde quer que fosse –, rappers cuja popularidade se mede a um nível regional, ou gente que oscila num limbo entre o reconhecimento mainstream e o chamamento do undergound como um Yelawolf. Antes aquilo que vai fazendo o género pulsar de modo mais sub-reptício mas igualmente vital, com a Internet como espaço privilegiado de acção. Com a Anticon a desaparecer – felizmente e já tarde – do imaginário colectivo, e editoras como a Def Jux definitivamente encerradas, o espaço para o rap mais aventureiro e fora de fase tem-se expandido à velocidade dos tweets por campos cada vez mais difíceis de alinhar num contínuo narrativo coerente.

É neste ambiente difuso, alimentado por inúmeras mixtapes e vídeos virais, onde do refugo vão emergindo alguns nomes que verdadeiramente interessam lado a lado com tantos mais irrelevantes que a ZDB encontra o seu “mercado”. Factualmente, pouco ou nada terão em comum o Lil B e o Mykki Blanco, mas de algum modo e sem grandes esforços de retórica, ambos se adequam perfeitamente a esse palco. O que se traduziu em duas apostas ganhas, que esperam réplica já na próxima semana com a vinda do Le1f.

© Susana Pomba

Tanto este último como o singular Mykki Blanco têm vindo os seus nomes constantemente associados a uma emergente “cena” com epicentro em Nova Iorque, que abordei vagamente quando escrevi sobre a enorme “Ima Read”, e que tem sido apelidada de queer rap. Não um género em si, é mais uma forma de estar no rap que põe em causa a sua relação com a misogenia e a homofobia. Não tanto como forma de reacção consciente a esses estereótipos, mas assumindo a homossexualidade enquanto uma vivência natural sem enveredar por tácticas panfletárias ou propagandistas. Geográfica e ideologicamente há uma ligação directa ao circuito de clubes de “voguing” nascido nos anos 80, mas centrando as atenções no concerto do Mykki Blanco do passado dia 6 de Setembro, essa relação acontece num plano muito mais espiritual do que formal.

Quem esperasse – com alguma justiça – uma performance da parte do Blanco que encetasse os movimentos de dança mundialmente conhecidos através do videoclip da “Vogue” da Madonna, deparou-se com algo muito mais próximo de alguns arquétipos do rap. Chegando até a lembrar um pouco o Lil Wayne de quando ainda tinha alguma importância, Blanco apareceu com um longo cabelo rapado dos lados e em tronco nu. Embora tivesse à sua disposição um avanço no palco em jeito de passerelle e até ensaiasse uma pequena coreografia, aquilo que fica na memória é a sua entrada pelo meio do público aquando da opressiva “Join My Militia”. O chamamento às armas, com Blanco a rastejar pelo chão como um Alan Vega sem necessidade de assumir o confronto. Um outro plano, mas Nova Iorque sempre como pano de fundo.

© Susana Pomba

Instrumentalmente, o ambiente denso e batidas cerradas das músicas do Blanco estão até mais próximas No Wave do que da House hedonista que servia de banda sonora nos já citados clubes, mas não deixa de haver algo celebratório em tudo isto. O arsenal sónico potencia uma tomada de posição bem clara, mas há o bom senso de não deixar que os detritos quase-industriais engulam as palavras numa manta de opressão gratuita. A interpelação de “Say My Name” das Destiny's Child – a acabar em ”say my motherfuckin' name” - é prova disso mesmo, antes do shout out recorrente de “Mikky Blanco” com a mesma melodia. Pelo meio, “Haze.Boogie.Life” deixou uma atmosfera mais rarefeita, enquanto “Wavvy” arrancou logo entusiasmo do público com a entrada daquela linha circular.

Houve ainda espaço para rapping a capella e uma intromissão de “Roll Da Beats” do DJ Hype, como que a testar o poder de miscigenação do rap pelos mais diversos campos, e a deixar vincada a ideia de que Blanco é efectivamente um óptimo rapper. Consegue criar uma aura em torno de si mesmo, sem se entregar a schock tactics e fez com que aquele beijo entre ele e um elemento do público parecesse a coisa mais natural do Mundo. E era. Concerto relativamente curto, em que o DJ Physical Therapy foi providenciando as batidas – de Brenmar ou Sinden – para Blanco, depois de ter feito o aquecimento com um DJ Set onde canções como “Climax” do Usher ou “Running” da Jessie Ware foram sujeitas a um tratamento alinha a UK Bass com o Hip-Hop, e demais correntes urbanas. Nada de particularmente interessante, mas todos naquela sala estavam mais curiosos em saber o que se iria passar quando Mykki pisasse o palco. Surpreendidos ou não, todos terão voltado para casa com o desejo de que a ZDB continue a criar espaço para concertos deste género. Da minha parte permite também que lhe perdoe colaborações com gente como Gatekeeper, caso os resultados não superem as baixas expectativas criadas. Espere-se por Cosmic Angel.

Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
25/10/2012