A dada altura do concerto, Jorge Cruz propõe uma espécie de sondagem à plateia, para saber quantos dos presentes já conheciam o Ritz Clube, que esteve uma boa dúzia de anos de portas encerradas por questões que não são para aqui chamadas. Como é natural, predominam os que pisavam pela primeira vez a histórica sala.
Quando o Maxime encerrou, em Janeiro do ano passado, Victor Gomes (
frontman dos seminais Gatos Negros) realçou que uma parte de Lisboa morre com o encerramento de casas como o Ritz ou o vizinho Maxime. Por isso, foi com emoção e expectativa que ontem me dirigi ao nº 57 da Rua da Glória, que continua a ter a companhia de bares como o Piri-Piri ou o Chuly Bar, embora sem o
facelift nem o mega-
hype (damos Graças a Nosso Senhor!) que transformou o Cais do Sodré numa espécie de Bairro Alto super-
trendy, onde é possível encontrar turistas de meia-idade, tias de Cascais e lendas do desporto-rei que é o futebol. O Ritz ainda cheira a novo, mas a mística continua espalhada pela sua escadaria e nas galerias.
O concerto propriamente dito serve de primeira apresentação lisboeta de
Roque Popular, disco com que os renovados Diabo Na Cruz cavam ainda mais fundo na fusão das raízes populares portuguesas com a urgência do (punk) rock. Oportunidade para ver como funciona em palco a banda de Jorge Cruz – de
mohawk à Joe Strummer –, João Pinheiro, Bernardo Barata e João Gil. Sem B Fachada, mas com uma tripla de reforços composta por Márcio Silva, Manuel Pinheiro e Sérgio Pires. A nortada de “Baile Na Eira” pode não varrer este país, mas espalha brasas pelo Ritz, com percussão que marca a hora de bailar nova canção e começar a fustigar o soalho. Depois de “Estrela da Serra”, breve revisitação de
Virou!. “Tão Lindo” e “Os Loucos Estão Certos” mostram como logo ao primeiro tiro (leia-se disco) os Diabo conquistaram boa parte dos fãs aqui presentes, e Jorge Cruz funde a matriz
rockstar com passos de folclore sob o potente rufo dos tambores. Por esta altura, quase metade da banda (Barata – claro! – e os manos Pinheiro) está em tronco nu. Esta já era uma banda vibrante ao vivo, e o acréscimo de batida torna-a ainda mais explosiva. O que a saída de B Fachada poderá implicar em termos de perca de sensibilidade pop é ganho em agressividade e crueza. “Sete Preces” põe o povo a dançar e “Combate” faz o soalho oscilar enquanto o pessoal salta e bate palmas. Para descansar um bocadinho, segue-se “Luzia” (na qual os efeitos produzidos por João Gil introduzem um factor de estranheza ao tema inspirado pela maior romaria de Portugal), mas a dança logo é retomada com “Bico De Um Prego” – que o diga um tipo a meu lado, que podia ter saído das matinées punk/hardcore que chegaram a animar este antigo cabaret – e “É Casamento”.
Como seria expectável, “Dona Ligeirinha” é dos temas recebidos de forma mais efusiva (embora o concerto tenha sido atravessado por
feeling festivo quase de ponta-a-ponta), e no final há palmas de parte a parte. Já “Fronteira” (bazar para Angola de avião ou na
voiture para a França pode ser a luz ao fundo do túnel, mas nunca é uma decisão tomada de ânimo leve) transmite uma melancolia de travo amargo antes de ganhar asas no sonho de vida nova nalguma terra de oportunidades. Bem mais alegres são ”Siga A Rusga”, “Bom Tempo” e “Corridinho”, antes de se fechar a loja, com instrumental
funky e
proto-beat box de Jorge Cruz. A loja reabre para o
encore da ordem, iniciado com “Memorial dos Impotentes”. “Bomba Canção” seria a forma ideal de terminar a noite, que após uma explosão de tal magnitude ficamos vazios por dentro – quem teve vontade de mandar um
stage dive ponha o dedo no ar –, ou não houvesse ainda lugar para o ska de “Chegaram os Santos”, numa versão mais
power do que a de estúdio. Hora de sair e pensar que os Diabo causariam furor nos Santos Populares. Quem não tiver um Patrono casamenteiro, escusa de desesperar: o Piri-Piri e o Chuly Bar continuam de portas abertas para tirar essa Cruz do vosso peito.