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Vodafone Mexefest
Avenida da Liberdade, Lisboa
2-3/12/2011


Mais do que fazer mexer, o novo festival da dezembro lisboeta cansa. Cansa o cérebro, porque há que fazer tantas e tantas escolhas, organizar horários, lidar com a emoção de se perder um artista que se queria muito ver em detrimento de outro que se queria ver ainda mais; cansa a garganta, porque está um frio descomunal nas ruas, as mebocaínas acabam cedo, o álcool não ajuda e há concertos tão incríveis que merecem os gritos da praxe, como o de Josh T. Pearson; cansa os braços, porque não há como não andar aos encontrões no meio da turba que vai correndo avenida fora; cansa o estômago porque o jantar consiste num único (se bem que gigante) kebab; e cansa, claro está, as pernas, porque muitas das vezes a corrida é a última solução para se tentar apanhar um concerto do início - e muitas vezes, falha-se, a frustração toma conta do cérebro e assim regressamos ao ponto um. No primeiro dia do Vodafone Mexefest apenas nos foi possível, por todas estas razões e outra, assistir a quatro concertos, mas chegou e sobrou para quem não tinha as expectativas tão altas no que toca aos artistas que neste dia tocavam.

No website do festival estava anunciado um concerto de Filho da Mãe para as 18h na Sala Vodafone FM, mas afinal este seria apenas às 20h, como indicado nos horários entregues ao público no local. Assim sendo, e depois de se ter ido para lá cedo, há que aguardar mais um par de horas até ter um primeiro vislumbre de música, ignorando-se esta sala e indo até ao São Jorge para assistir aos Asterisco Cardinal Bomba Caveira, grupo de miúdos que toca e canta rock em português, para dançar, segundo dizem. Foi um concerto agradável durante cerca de minuto e meio, até se perceber que as letras eram péssimas e sem sentido, os riffs e o backbeat quase sempre o mesmo e a maioria dos fãs abaixo do limite de idade aconselhável à prática de relações sexuais. São castiços, sem dúvida. O que é pena é serem igualmente maus.

"Mau" foi também o que devem ter pensado os que abandonaram a sala da Sociedade de Geografia logo após o primeiro tema (de três) que Josh T. Pearson tocou, isto depois de uma saudável sessão de humor. E pensaram-no por uma simples razão: estupidez. Não querendo de todo encetar uma posição do contra - ou talvez sim -, em que se criticam concertos bem recebidos (vide anterior) e se elogiam os que nem tanto o foram (caso deste), Josh T. Pearson mostrou que é um cantautor enorme e isto é uma descoberta que embevedece, porque não o conhecíamos anteriormente. Não só faz canções belíssimas de raíz Americana, ainda perde tempo a troçar de si mesmo, a aprender algum português - como um saudável merda! enquanto afinava a guitarra -, a insultar os miúdos que saem a meio e, principalmente, a tocar a guitarra de uma forma tão exímia quanto eficaz e ternurenta. Josh T. Pearson trouxe ao festival de música aquilo que os festivais normalmente não têm: humanização. Não existiu enquanto músico pop famoso que se elogia à exaustão, existiu enquanto ser humano, com as qualidades e defeitos que daí advêm. E só por isso foi excelente. E por "Sorry With A Song", segundo tema tocado e genialidade absoluta. Os poucos que restaram na sala devem tê-lo percebido bem: este foi um dos melhores concertos da noite e pode muito bem ter sido dos melhores do festival.

Já os Handsome Furs tocavam quando se entra no Tivoli, perante uma plateia - novamente - adolescente na sua maioria. Mas no que toca à música o duo canadiano é aquilo que se pode chamar de inofensivo: batida pop dançável (ou, a prova de que o 4/4 faz qualquer coisa soar bem), festa quanto baste, uma pose aos teclados algo estranha encetada por Alexei Perry e, claro, uma dose salutar de cliché como quando Dan Boeckner anuncia que um dos temas se chama "Fuck the Police" seguido de aplausos. Mas foi um concerto agradável e serviu para dar uso às pernas - e, por conseguinte, arruiná-las ainda mais.

A Banda Mais Bonita Da Cidade parece esforçar-se em não ser conhecida apenas como "aquela banda da "Oração"", e nós apreciamos o esforço. Se é verdade que, a espaços, os brasileiros soam simplesmente a uns Clã com sotaque, as canções são agradáveis - quando não se perdem em trajeitos poéticos de gosto duvidoso - e aquecem mãos e corações dos bastantes presentes na Casa do Alentejo. Do jeito Mutantes de fazer as coisas em "Mercadoramama" e "Oxigênio" (esta última autoria do pai da bonita cantora Uraya Torrente), à sensualidade de "Ótima" e à beleza de "Se Eu Corro", sem esquecer "Boa Pessoa", onde, julgamos, o azul [do céu] é de uma beleza que caçoa refere-se ao Mágico FC Porto. Infelizmente, por se ter outros afazeres em mãos, não se pôde ficar para o fim - que terá sido, inevitavelmente, "Oração", cantada em coro por todos quantos lá se encontravam. Mas assim até é melhor: fica-se com a percepção de que A Banda Mais Bonita... tem melhores canções do que essa. O que é verdade.Ao segundo dia do Mexefest o corpo já não dá para mais - até porque o dia anterior só terminou pelas sete da manhã e após uma saudável sessão de alcoolemia - mas há ainda que fazer um esforço para ver, entre outros, o enorme James Blake; por isso, se as pernas nos doem muito, metamos uns drunfos e sigamos para a Avenida da Liberdade, corrê-la de lés a lés, dizer a todas as miúdas olá (ou não, considerando a falta absoluta de sociabilidade). O tempo ajudou, depois de uma leve chuva na sexta-feira, e chegou-se cedo o suficiente para não apanhar multidões, excepção feita à entrada do Tivoli, onde por acaso até se conseguiu arranjar um lugar à frente para assistir de forma decente aos dois espectáculos que se lá deram.

Não éramos os únicos curiosos para saber em que consistiria um concerto do Coro Africano da Igreja de São Luís dos Franceses. O espaço era pequeno e estava completamente cheio de gente que quereria, como nós, confirmar se se estaria perante um concerto gospel ruidoso ou, política e religiosamente falando, e talvez abusando um pouco de um certo estereótipo existente, verificar se isto seria não tanto um coro mas a confirmação do maior triunfo dos negros e da música negra: conseguir cantar loas a Deus utilizando instrumentos do diabo (como nos ensinam os blues ou os Spiritualized). Claro que a desilusão foi total: o Coro Africano não passava disso mesmo, um coro de música religiosa formado por africanos - excepção feita a uma senhora branca de alguma idade -. Mesmo tendo um djambé em palco - no qual se deu início ao concerto com um estoiro, via um músico convidado da Guiné -, este só foi utilizado nas três últimas canções, dando-lhe o interesse que não teve durante a primeira meia hora e tornando-se absolutamente incrível no final quando o ritmo toma conta do pequeno espaço. Para trás ficaram cantares religiosos iguais a tantos outros grupos corais, coisas que até Deus deve achar chato, como se verificou pelo olhar impassível das estátuas de Cristo. Claro, soou tudo muito bonito porque era um coro que cantava; mas não nos esqueçamos que os coros são o autotune da música erudita.

Do Coro Africano passamos para a Lisboa Mulata; meia hora antes do concerto já uma fila considerável se encontrava à porta do Tivoli, mas não foi um problema entrar no espaço. Perante um teatro bem composto (que haveria de rebentar pelas costuras com James Blake) o duo português apresenta-se como imaginamos que a sua música se apresenta, num palco galeria-de-arte-de-guitarras e com uma única luz balançando no topo. Pegando em temas antigos, mas principalmente nos do mais recente Lisboa Mulata, cuja canção do mesmo nome se ouve cedo e nos faz querer dançar - não fora a timidez do público - os Dead Combo fazem do teatro uma festa portuguesa, numa altura em que se tecem os mais variados elogios ao Fado, Património da Humanidade. "Ana Adamastor" é uma bonita dedicatória a uma Ana, do bar Adamastor, e "Morninha do Inferno", tal como a maior parte do repertório dos Dead Combo, é a prova de que Tó Trips é um dos melhores guitarristas nacionais (relembrar que já tocou na melhor banda de todos os tempos). "Esse Olhar Que Era Só Teu" vem com um quase pedido de desculpas por ter sido "roubada" a Amália Rodrigues, "Blues da Tanga" lança a dúvida - seria um banjo eléctrico ou uma motoserra? -, e para o final está reservada a "Marchinha do Santo António Descambado", que vê os Dead Combo partir como vieram: estranhamente solitários, como personagens de um Easy Rider nacional. Fica, acima de tudo, a confirmação (era preciso?) de que o duo é a melhor coisa que aconteceu à música de raiz portuguesa desde que Carlos Paredes entrou nos estúdios da Valentim de Carvalho.

Queríamos ver James Blake num contexto mais intimista desde que, claro, ouvimos o seu disco de estreia, e, seguidamente, o vimos no Optimus Alive num bom concerto mas que pecou pela "abertura" do espaço. Blake actuou perante a maior multidão do festival (e a mais irritante, virtude dos assobios e gritos entre e durante as canções que pediam o silêncio), e inicia, tal como no primeiro concerto que dele vimos e tal como no disco, com "Unluck". Não faltaram todas as grandes canções do LP - como as "Lindisfarne" e "I Never Learnt To Share" -, como houve igualmente tempo para aquelas que se encontram nos EPs, tanto os mais antigos como os recentes. Temos ao terceiro tema um bonito take à bossa nova (para palermas que nunca ouviram Walter Wanderley) e em "CMYK" uma explosão dançável que quase destruía o teatro com os graves, subgraves e movimento dos corpos colados às cadeiras. Surpreendente foi a cover (que já ninguém se lembrará de que o é) de "Limit To Your Love", que começou belíssima e calma como a conhecemos e que depois se transformou numa incredibilidade para a pista. Ainda houve espaço para "The Wilhelm Scream" e um encore com "A Case Of You", tão exemplarmente tocada que quase arriscamos que, tal como com Feist, deixará de ser de Joni Mitchell. No final ficou sobretudo uma sensação de estranheza: a de ter dado um concerto intimista num espaço aberto em Julho, e um concerto de dança num espaço fechado em dezembro. Mas foi excelente. Não pedimos mais.

Depois de muito se procurar pela entrada correcta para o metropolitano dos Restauradores, onde os Blood Red Shoes iriam estar naquele que era o seu regresso a Portugal, chegamos a tempo de "Light It Up", malha power pop retirada do relativamente recente Fire Like This. O duo menino-menina não reinventa a roda, mas é estimulante q.b. para dar um torcicolo ao músculo menos acautelado. "This Is Not For You" é apresentada com a mesma energia que é devolvida pelo público, que a meio de "Don´t Ask" se vê envolvido - nomeadamente quem se encontrava juntinho ao palco - numa bronca descomunal com a segurança, havendo espaço para insultos, pequenas agressões e um pescoço apertado, em mais um caso de policiamento nazi estranhamente comum em concertos por cá. Infelizmente este momento retirou algum do brilho ao concerto, que encerrou o Mexefest (excluindo DJ sets) com chave de prata. Porque Lisboa, a Mulata, não pára de se mexer mesmo com o fim do festival, sai-se dali e deslocamo-nos até ao Bairro Alto para apertar a mão a grande jornalistas e acabamos a beber cerveja de litro na casa de grandes destruidores de Facebooks. As noites do Mexefest são as melhores.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
06/12/2011