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OUT.FEST
Barreiro
08/10/2011


Antes de mais um conselho: nunca adormeçam no comboio. É que de um momento para o outro, os dez minutos a que estão do conforto de uma cama quentinha podem transformar-se em dez quilómetros e dão convosco num lugar inóspito onde os transportes públicos são ainda uma invenção por descobrir. Claro que nada disto tem a ver com o Barreiro (ou talvez tenha - já lá vamos), onde o Outfest se torna cada vez mais ponto de passagem obrigatória para quem gosta de percorrer os circuitos nacionais, e imprescindível para quem na música prefere o seu lado mais fora/extremo/alucinatório/todas as anteriores. O último dia prometia muito, entre estreias e colaborações inesperadas, e terá cumprido os objectivos principais de proporcionar excelentes concertos e deixar todos os presentes com a cabeça e os tímpanos à nora. Pelo menos dois ficaram: um perdeu a sua paragem, o outro tecia loas à raça humana numa voz gutural às quatro da manhã. Acabou tudo bem, portanto.

Visto que a organização - na verdade, apenas o caríssimo url: http://bodyspace.net/noticia.php?id=001650 text: Rui Pedro Dâmaso - não quis dizer ao repórter ("repórter", seu filho da puta pretensioso?) Bodyspace qual era a ordem em que as bandas actuavam (por acaso estava afixado, mas só reparei depois) e este foi para lá desconhecendo-as por completo (porque o que curte mesmo é Coldplay), o texto que se segue não fará qualquer menção a nomes. Fica o desafio aos leitores para tentarem adivinhar as actuações pelas descrições apresentadas. Os primeiros cinco a enviar as respostas certas para o nosso mail ganham uma foto da Scarlett Johansson nua. E esta palermice serve para falar do primeiro concerto, onde a música adquiria tons quase apocalípticos e sempre indefinidos - por não se saber onde um determinado som iria parar no contexto da criação do duo que ali se apresentava. Pensamos nos anbb e na sua filosofia de que a electricidade é ficção quando o pavilhão se enche de ruído de estática e o nosso interesse aguça-se quando Pedro Sousa (ups, pistas a mais...) transmite uma maior energia ao saxofone. Foi uma belíssima actuação, e a partir daqui seria sempre a subir.

Têm as suas origens em Sto. Tirso - que é lindo -, mas podiam muito bem ser de outro planeta; o duo menino-menina que se seguiu explorou os lados mais estranhos do trance, coisas próprias de quem, julgamos, achou um dia que Aphex Twin era a reencarnação de Cristo. O destino final do psicadelismo dos teclados foi como não podia deixar de ser o beat, enquanto a guitarra ajudava à criação de um objecto raro e de um momento dançável antes do caos satânico que lhe seguiria. Marcaram pontos. E a menina tinha uns calções muito bonitos.

Enquanto o conjunto habitual de hipsters se sentava em frente ao palco com tampões nos ouvidos a figura que lá se encontrava impunha respeito, não só pelo porte físico como pela sua música. "Um homem e a sua guitarra" puxa imediatamente a imaginação para a folk, mas não havia nenhum resquício de tal estilo enquanto ribombava o riff através da sala, durante dois temas longos a fazer lembrar a outra banda sobejamente mais conhecida em que este músico toca (yay, outra pista!). Mais que um concerto foi uma verdadeira violação auricular - e pelo menos nisto há que dar a palmatória aos supramencionados hipsters; quando o pavilhão treme como uma folha ao vento não há muito que se possa dizer nem buraco para onde se possa fugir. Violento demais para ser verdade. E "violento" nesta situação quer naturalmente dizer "bom".

Mas falando de violência: um dos grandes momentos do festival seria inevitavelmente a one-night-stand entre uma lenda viva do krautrock e um trio nacional incrivelmente dotado (musicalmente, musicalmente...). Se as expectativas eram enormes - e eram - o que aconteceu superou-as largamente. Aliás, a lenda nem precisou de ser entendida para adicionar a qualidade mística que faltava: bastou-lhe estar presente. Os temas de Young Love já eram grandes com a sua participação, mas o final, em jeito krautnoise, foi uma revelação total. Eu acho que não me estou a conseguir explicar correctamente; um concerto de uma incredibilidade assim leva-nos a pensar no suicídio. Temos a consciência de que nunca mais ao longo da vida assistiremos a algo semelhante, e então, qual é o sentido de continuar? Isto não é um exagero, é uma verdade vinda de quem saiu de lá derreado, rendido, absolutamente fodido de êxtase, uma verdade drogada de quem se pica nas veias com aqueles rasgos de electricidade e explosões sonoras, mas uma verdade, ainda assim. Encarem-na como se encara um arrumador de carros que jura que os 0,50€ é só para comer. E fiquem a saber os nomes, porque merecem: Damo Suzuki e Sunflare, claro está. Um segundo conselho, para quem não viu: confessem os vossos pecados ao padre mais próximo de vós. O Criador existe mesmo. Eu senti-O. Foi Ele que me fez dormir. E fala-nos através da guitarra de Guilherme Canhão.

Um concerto que devia ter ficado para o final, tanto que nem a ajudazinha do senhor de há pouco ao simpático quinteto (hoje quarteto) norte-americano que só por acaso era cabeça de cartaz o conseguiu superar. Tocaram canções, «porque é isso que fazem», incluindo uma enérgica prestação de "Ghost In The Room", tema tirado ao disco que era sem dúvida o mais requisitado desta noite: Rated O, também o único que idiotas com t-shirts de Sun Ra ouviram do grupo e mesmo assim não ouviram muitas vezes. Foi um concerto competente, salvo naquilo que não era culpa sua (as vozes que mal se ouviam, algo que parece que veio para ficar), havendo grandes riffs e malhas para todos os gostos. E um teclista que consegue fazer do "estar sentado a tocar" algo assumidamente fixe. A ajudazinha também ajudou, claro, passe-se a redundância. Noites longas assim e plenas de emoções rock só fazem com que suspiremos pelo próximo. Falta um ano para o Outfest 2012.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
11/10/2011