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Ar no Aquário
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
24/06/2011


Para todos aqueles que frequentam a galeria Zé dos Bois, a chegada dos dias quentes será a única altura (e a única razão) para que, num desabafo, se liberte uma ou outra palavra menos carinhosa em relação ao mítico espaço. “Problema” de anos que se procurou colmatar com recurso a uma festa de angariação de fundos que relembrou as lendárias noites na Avenida da Liberdade e que irá perdurar na memória. Uma belíssima ideia que se traduziu num ambiente boa onda de caras conhecidas do espaço que se ia movimentando com classe pelas diversas salas ao sabor dos acontecimentos. Um cartaz imponente que contou com a presença solidária de muitos dos músicos que foram “crescendo” naquela casa (termo que se adequa), em pequenas actuações (a média rondou os 20 minutos) um pouco por todo lado no edifício situado na Rua da Barroca. Tendo em conta a adesão do público, as próximas noites prevêem-se mais frescas.

Não tendo chegado a tempo para presenciar o concerto do Tiago Sousa, foi já a meio que apanhei a Orquestra do Sei Miguel. Contando coma presença dos seus comparsas de sempre (César Burago e Fala Mariam), esta pequena orquestra assinalou também a estreia do emergente Pedro Sousa (que por esta altura parece estar presente em muitas das coisas que interessam) numa formação do Sei. Mais uma peça nesse mosaico riquíssimo e indecifrável, a música da orquestra pautou-se por um contínuo sonoro mais cozy do que o habitual silêncio, sem nunca ceder à previsibilidade. Foi um fluxo continuamente intrigante, marcado pela comunicação quase telepática entre o pocket trumpet do Sei e o trombone da Fala, num diálogo de notas lânguidas organizadas em torno da percussão mais groovy a que já assisti do César Burago, e pautada por uma prestação mais textural do Sousa, num fraseado rasteiro que se fazia notar em pequenos gestos.

Sendo que Manuel Mota, Margarida Garcia e David Maranha já por diversas vezes se cruzaram ao longo destes anos, esta foi a primeira actuação deste trio. Música em latência, pairando sempre sobre uma ameaça austera mas capaz de encontrar caminho para a luz por entre as notas dolentes de um Mota em modo baladeiro, Maranha numa postura mais discreta do que o absoluto de Antartica por exemplo, e Garcia assumindo a faceta mais expansiva no contrabaixo eléctrico. Solene, mas permeável por força de uma volatilidade que se ia revezando em detalhes de um bom gosto febril. Até porque consta que os músicos estavam meio adoentados. Confere.

Filipe Felizardo deixou o arsenal de pedais em casa, optando por uma música mais esparsa e tangível, que não se esconde por detrás do delay. A guitarra sugeriu os acordes primordiais dos blues via Neil Young, mas viu-se encarquilhada por vias mais sinuosas que se escapavam continuamente ao riff para se abstrair numa aridez que se escapa ao silêncio e soa (mesmo em condições “precárias”) a algo dele. O futuro poderá passar por aqui, sim. Mas o mais gratificante tem sido todo este caminho. Ainda antes do final dessa actuação, subi até ao terraço para apanhar com os últimos acordes dos Dead Combo vindos do telhado da casa de banho (e sem que eu conheça bem a música deles, encaixaram na slot mental que lhes reservava) e aquele que foi o concerto mais punk do duo de Pedro Sousa e Gabriel Ferrandini. Deles já se sabe (ou devia saber-se) serem uma das melhores coisas a acontecer à música libertária nos últimos tempos, e apesar deste não ter sido o seu momento mais memorável, adequou-se perfeitamente ao feeling de ar livre de um terraço cheio e quase em cima dos músicos. Subliminarmente, sentia-se um movimento palpitante (que nunca chegou a acontecer) conduzido por um ataque de Ferrandini absolutamente feérico a tudo e mais alguma coisa que constitui a bateria e por um Sousa (em contraste com a solenidade do concerto com a Orquestra do Sei Miguel) a mandar berros do saxofone como que a fustigar pragas.

Parte do combo que é o Carro de Fogo de Sei Miguel (melhor nome de sempre), o trio de Pedro Gomes na guitarra eléctrica, Rafael Toral num oscilador(?) bem personalizado e César Burago na percussão, foi um encontro de mentes idiossincráticas em torno dos ensinamentos de Sei Miguel. Peça convulsa, que se revolvia em diversos momentos de despique tonal sem a periclitância newbie do vazio. A sala dos fundos do 49 teve todo o ar de poço que se exigia dos falsos crescendos em fragmento que pareciam ser sugeridos. No todo, fica alguma confusão, mas o sentimento de plenitude. E a coerência possível. Sem ter presenciado o Norberto Lobo, pude saber que foi óptimo (é já um costume) pela boca do nosso Paulo Cecílio (Who puts the sexy in boina). Logo, só pode ser verdade. Já os 15 minutos aguentados do concerto dos PAUS foram suficientes para classificar a enchente no Aquário como despropositada perante algo tão subpar. Um todo que lembra Battles nunca poderá ser sinónimo de interesse e no geral fica a ideia de um groove previsível que se aproveita do pior dos Don Caballero em registo cabotino para os colar às onomatopeias do mundo pós-Animal Collective. O Luís Filipe Rodrigues (outro grande) foi preciso quando os classificou como “math-rock dancável” (ou semelhante). No mau sentido (poderia existir outro?) era disso que se tratava. A verdadeira dança fez-se ao som dos Cimento a espalhar hotness pelos pratos. Suor fixe.

Por esta altura, já o ar deve circular pelo aquário em baforadas refrescantes. Que isso não seja impeditivo de uma nova celebração.

Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
12/07/2011
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