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Rasal.Asad + Shhh + Flat Opak + Ghoak
Bar Bicaense, Lisboa
16/01/2004



Há editoras assim. Que não se limitam a sair à rua com o credo na boca, que levam os seus discos e as suas propostas até junto das pessoas. A Thisco é um manifesto bilingue de intenções, a morada editorial de grandes projectos da electrónica lusa, erguida por pessoal com estaleca para levar a montanha a Maomé. Usa uma semântica de contracultura muito própria e termos como “thisconnected” e “anti-fashionista” fazem parte do léxico presente nas missivas da etiqueta. A recessão já era (ou quase), mas a Thisco soube afirmar-se mesmo em tempos de crise. Este evento, que reuniu quatro nomes do seu catálogo, é uma espécie de evolução na continuidade. A electrónica mexe aqui, dentro de portas. Feito o reconhecimento do terreno – está certo, o Bar Bicaense fica então na rua do elevador da Bica, perto da Caixa Geral de Depósitos (Calhariz) –, o repórter destacado para o evento desce até ao Chiado para fazer horas.

Desce e encontra dois amigos que o informam que a actuação do projecto To Rococo Rot ainda decorre no túnel da estação Baixa-Chiado. Nesse caso, não custa dar um salto até lá. Isto de promover concertos no metro parece ser uma iniciativa ganhadora. As escadas de acesso ao Largo do Camões, no interior da estação, encheram. Diversas tribos acorreram ao local para assistir à actuação-assente-num-laptop-da-Apple da formação com nome de subgénero barroco. O empreendimento “Em Trânsito”, que o Instituto Alemão promove e que pretende lançar o debate sobre a mobilidade em Lisboa, contou ainda, nesta noite inaugural, com uma instalação interactiva de Vera Doerk, intitulada “Update (ZO2)”. Fica o apontamento daquilo que acabou por servir de warm-up para a série de actuações que se seguiam.

Ao invés de atalhar o rosário das electrólises ambient que aconteceram, talvez o importante seja embrenhar o prezado leitor no matiz estético em que cada um se move. Rasal.Asad é uma súmula de piruetas galácticas, simbioses demenciais de detalhes electrónicos gélidos e vozes manipuladas. A noite serviu, aliás, de apresentação ao álbum “Asuna”, assinado por esta formação. Por seu lado, Shhh e Flat Opak têm-se revelado promessas excitantes e indeléveis no catálogo da Thisco com sets muito competentes, revelando ser duas frentes combativas da opacidade na criação. A ver no que dá, uma vez que se encontram em pré-temporada. E depois, há Ghoak, um miúdo com vontade de crescer depressa. É difícil não ficar fascinado com o Carlos Nascimento, os seus 18 anos e as atmosferas sonoras que cria, inenarráveis e perpassadas pelo tal break beat expansivo e pequenas anotações de voz.

Noite alta e a cortina de fumo adensava-se, desprendendo-se dos cigarros nervosos. As actuações foram apoiadas por uma forte componente visual em projecções contra uma parede branca. Eis o multimédia como adjuvante da música, em sucessões de imagem sem grande continuidade narrativa, e recorrendo ao pleonasmo e à redundância formais. De um acervo vintage de imagens da classe média norte-americana (a preto e branco) a segmentos políticos de mulheres cobertas com véus e crianças subnutridas. Tempo ainda para a promoção do disco do projecto Gomo (que está aí a chegar) num ensaio simpático sobre os efeitos da escuta prolongada da música de Paulo Gouveia. Quando a imagem, a palavra e a expressão livre fazem a curva e se desviam do boião de convencionalismos.

Helder Gomes
hefgomes@gmail.com
16/01/2004