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The Legendary Tiger Man
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
25/12/2010


Foi algo que se transformou numa tradição de Natal; pelo décimo ano consecutivo, a Galeria Zé dos Bois encheu-se de gente que na noite mais pura do ano preferia ver o diabo à sua frente, sussurrando-lhe com a voz de uma Gretsch. O Natal que se foda, estamos com os blues! No entanto, aquele tempo verbal com que iniciamos este texto é escrito com a maior das mágoas: o Homem-Tigre acaba de anunciar que não mais teremos estas festas a dia 25, «porque toda a gente agora dá concertos nesta data». Mas não desespereis; nova tradição se iniciará noutro período qualquer, possivelmente na Páscoa. O que faz sentido, porque tal como na música, a religião vende mais quando os seus ídolos morrem.

Não estava por lá Asia Argento a guiar os Reis Magos em direcção ao presépio-aquário, mas não foi por aí que "Life Ain´t Enough For You" deixou de ser a canção que é e que abre o mais recente Femina, o disco português do ano para a Blitz em 2009, um dos discos do ano para a Les Inrockuptibles em 2010. Mas não foi a dissecá-lo que Paulo Furtado mostrou ser um bluesman digno de inscrever o seu nome na lista de todos os que venera(ra)m cruzamentos e pactos demoníacos, e sim por ter colocado "Light Me Up Twice" e "Hey, Sister Ray" por entre canções de trabalhos mais antigos como Naked Blues e Masquerade (os temas-homónimos, p. ex.) e bastantes versões, claro - da essencial "Route 66", viagem de Santiago versão rock n´ roll, até "These Boots Are Made For Walking", do não menos essencial Lee Hazlewood. Um Tigerman em formato best-of.

Duas explosões: "Crawdad Hole", do disco que deu o nome à tradição, e "Bad Luck Rhythm´ n´ Blues Machine", em modo acelerado, porque o público assim o pediu. Aliás, para além do concerto memorável, desta noite retiram-se prendas inesquecíveis: aquela dada aos miúdos que assistiam à janela, a quem foi permitido entrar e ouvir de perto o encore, aquela que consistiu numa versão ruidosa de "She Said" com direito a brincadeira com fita magnética, e aquele final com "Surfin´ Bird", que foi um disco pedido pelo público (substituindo "Jockey Full Of Bourbon", de Tom Waits, que Tigerman até tinha ensaiado antes do concerto) e que contou com a presença vocal de uma convidada especial e tatuada, mais conhecida no mundo como Nazaré. Faltou como sempre "Fuck Christmas, I Got The Blues", mas há uma explicação: «se a tocasse nestas alturas nunca isto tinha durado dez anos». Aceitemo-la, e encaremos com melancolia o fim da tradição, para sempre imortalizada em forma de graffiti na janela do aquário (ou até a arrancarem com sabão). Uma despedida em grande tanto da festa como do próprio ano de 2010.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
26/12/2010