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Fim-de-semana Especial: Fennesz, Brandlmayr & Dafeldecker
Teatro Maria Matos, Lisboa
04/12/2010


Na segunda noite do Fim-de-semana Especial do Teatro Maria Matos, a sorte passou a ser azar e o azar converteu-se também num bom rasgo de sorte. A sorte (desfeita) era daqueles que esperavam ver Ben Frost de regresso ao Maria Matos para interpretar alguns momentos do muito intenso (e apreciado) By The Throat e, quem sabe, revelar também um pouco dos projectos que tem em mãos neste momento. Infelizmente, Ben Frost foi vítima das greves de funcionários dos transportes aéreos e a notícia que circulava era de que ficou retido na Alemanha sem poder embarcar. O regresso está para breve. A notícia do cancelamento constava já da folha de sala actualizadíssima distribuída na bilheteira e os funcionários do Maria Matos (uma verdadeira equipa All-Star) alertavam cada um dos presentes para o facto de ser possível o total reembolso do bilhete, ou de metade apenas para quem, mesmo assim, desejasse ver Christian Fennesz, Martin Brandlmayr e Werner Dafeldecker. A verdade é que, mesmo sem Frost no programa, o mais experiente Fennesz justificou o voto de confiança de quem ficou para ver.

E é precisamente aí que acontece o feitiço do azar transformado em sorte. Acompanhado por Brandlmayr e Dafeldecker, numa formação de luxuoso trio da música experimental austríaca, Fennesz iria muito provavelmente passar por alguns dos momentos de 'Till The Old World's Blown Up And A New One Is Created, um dos discos de colaboração que envolve os três músicos. Essa suspeita provocava antecipadamente algum receio se nos lembrarmos de como o disco (lançado pela Mosz, em 2008) é muitas vezes inconsequente, debruçado para dentro e dado a uma deriva ligeiramente aborrecida. Os receios aumentavam com a recordação ainda viva de um concerto de Fennesz, em Oeiras, no ano passado, em que o austríaco despachou as coisas em pouco mais de trinta minutos pautados por algum frete. Mas nenhum desses maus prenúncios foi confirmado no Maria Matos, onde Fennesz demonstrou estar de regresso à óptima forma dentro daquilo que também esperamos dele: uma capacidade invulgar para extrair da guitarra fenómenos com a força da natureza.

Sentado, Fennesz impõe-se na malha sonora do trio com uma guitarra, que tão depressa manda vir chuva como manda vir sol, numa ostensiva toada shoegazer capaz de fazer acreditar que ali estavam os My Bloody Valentine em vez da realeza austríaca. Ainda que tenha falhado os Faust, parece-me que poucas vezes durante este ano o volume de som no Maria Matos tenha atingido tais níveis. Ainda assim, e apesar de muitas vezes ter abafado os restantes membros do trio, Fennesz soube também ser moderado para dar espaço aos detalhes de Brandlmayr, na bateria (uma máquina de cortar, nas suas mãos), e às mais aventureiras abordagens de Dafeldecker ao contrabaixo (que tocou a certa altura com saliva nos dedos). Apesar das idiossincrasias de cada um, houve sempre dinâmica suficiente para abrir as portas do labirinto sonoro, e assim avançar numa noite que fez esquecer alguma pasmaceira Fennesz e receber com entusiasmo esta renovação shoegazer do semi-deus de Viena.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
06/12/2010