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Seu Jorge e Almaz
Coliseu dos Recreios, Lisboa
29/10/2010


...E Agora Para Algo Completamente Diferente!

Depois do Porto, na véspera, o Coliseu de Lisboa apresenta-se bem composto para receber um velho conhecido, Seu Jorge, desta vez acompanhado por uma nova formação – Almaz, cujo único membro extra-Nação Zumbi é o baixista António Pinto.

A noite começa com Errare Humanum. Lúcio Maia surge só no palco, a guitarra em distorção. Depois entra a restante banda e ouvem-se os primeiros aplausos. Mas só a aparição de Seu Jorge proporciona a primeira grande ovação. A flauta transversal plana sobre os restantes instrumentos, como os deuses ou astronautas da canção, numa cadência circular. O tema ganha força ao vivo. A voz e a atitude de Seu Jorge estão mais rock n’ roll – canta com forte espectro emotivo e atira a base do microfone ao chão.

Saudosa Bahia abranda um pouco o ritmo, reaproximando-se duma matriz mais América Latina, MPB misturada com acordes de surf music. Mas sempre com a electricidade sob pano de fundo, contaminando o horizonte sonoro.

Palmas introduzem Cirandar, um dos temas mais conseguidos do álbum promovido – e, já agora, um dos preferidos deste escriba. O singular dub praieiro permite a Seu Jorge cirandar de forma insinuante pelo palco, e a plateia junta-se à dança. Um dos momentos do serão.

Em seguida, Carolina recua no tempo, até Samba Esporte Fino, numa das poucas revisitações da discografia mais antiga do autor brasileiro. Mas o tema apresenta-se com uma reciclagem ao nível dos arranjos e uma energia renovada.

O espectáculo pode ter servido para vencer algum cepticismo ou preconceito em relação a Seu Jorge And Almaz. Este é daqueles discos de ruptura que precisa de ser (re)ouvido, esquecendo o que está para trás na carreira do músico. Vai entrando, vai-se entranhando, como um quadro que ao início conhece reservas por quebrar regras estéticas mas que depois se impõe pelo seu valor artístico.

Após Das Model subir num crescendo eléctrico, Everybody Loves The Sunshine (original de Roy Ayers) faz esquecer as agruras dum dia chuvoso que semeou o caos na Baixa da capital. É novamente Verão, pelo menos no Coliseu, clima acentuado pelas luzes quentes que tingem o palco. Ao vivo o tema assume um tom mais forte do que no álbum, onde era registo delicodoce para cocktail e esplanada.

No final de Pai João, que mistura electricidade – especialmente nos solos de guitarra e nos refrões – com momentos de acalmia, as luzes acendem-se para o anfitrião apresentar os seus acompanhantes nesta nova aventura.

Água Viva, carregada de swing, e Tive Razão (em versão reggae/dub muito bem esgalhada) são momentos para relaxar no meio de toda a electricidade e descargas de energia.

“I Wanna Rock With You” – “All Night” – responde o público ao desafio lançado por Seu Jorge, que arrisca alguns passos em homenagem a “Wacko Jacko”, antes do primeiro momento Bowie da noite. Em Ziggy Stardust, roda à volta do palco, enquanto a banda entra num desvario que faz lembrar Led Zeppelin.

Cristina é composto em redor da guitarra wah-wah e de muito reverb, e em Juízo Final, que termina em jeito de samba psicadélico, Seu Jorge agita o ganzá e “a luz chega aos corações” da plateia.

Xica da Silva, versão de Jorge Ben Jor, é marcada por uma forte entrada do baterista Puppilo. E Seu Jorge volta a dançar como se estivesse possuído pelo ritmo da sua banda.

Quando o vocalista abandona o palco, por momentos, é (o grande) Lúcio Maia que passa a liderar as hostes, na versão instrumental de Mais Que Nada, de Sérgio Mendes, como se fosse o braço direito de Jorge Mário da Silva.

Girl You Move Me revela-se outro assalto sonoro, compasso após compasso, descansando apenas por instantes, antes de se lançar em nova arrancada, com um solo de guitarra que corta a respiração.

Retoma-se o instrumental de Mais Que Nada, desta feita com a colaboração do Coliseu, que entoa em uníssono “este samba / que é misto de maracatu / é samba de preto velho / samba de preto de tu.”

«Que bonito, hein, obrigado!» - diz Seu Jorge, na sua voz característica, antes de avançar com os músicos para agradecer ao público.

No encore, regressa ao palco acompanhado apenas pela guitarra acústica. Começa por recordar Life On Mars, da banda sonora de The Life Aquatic, que recebe grande salva de palmas; depois vem Rebel Rebel, do mesmo disco de versões.

Seguem-se dois momentos impregnados pela consciência social dum Homem que não esquece as suas raízes. A Zé do Caroço sucede-se Negro Drama, dos Racionais Mc’s, num spoken word ao jeito de Gil Scott-Heron.

Por fim, ainda há tempo para Seu Jorge gritar «eu vim com a Nação Zumbi / ao seu ouvido falar / quero ver a poeira subir / e muita fumaça no ar!», e para se repetir “Pai João”, ora acelerada, ora lânguida.

Fim de noite; fim de festa – sem samba-funk, mas com muito boa música.

Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
01/11/2010