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David Maranha + Manuel Mota + Richard Youngs
Teatro Maria Matos, Lisboa
21/06/2010


Entendendo a comunicação, no sentido mais lato do termo, enquanto um fluxo de informação que pressupõe uma codificação assente na partilha de um mesmo código de linguagem, a idiossincrasia desta mesma poderá facilmente levar a um vazio. Embora esta definição seja algo simplista quando estamos perante um sistema tão complexo, poderá servir para a compreensão imediata (pressupondo uma abordagem cerebral de tudo isto) de um “processo” na livre improvisação.

Dada a natureza tão idiossincrática do discurso musical dos três nomes presentes na passada segunda feira no Teatro Maria Matos, poder-se-ia incorrer no risco de apelidar a actuação de vazia. Nada mais errado. Embora tenha sido notório que o triângulo presente não se tratou de uma entidade, mas de um encontro de três personalidades distintas e vincadas, nunca se abateu um vazio sobre os sons esparsos que emanaram do palco. Aliás, o momento em que Richard Youngs se apresentou “sozinho” (sobre um drone disparado por David Maranha) declamando ad aeternum uma mesma linha melódica terminada em “...you and I”, revelou-se algo dispensável. Com esse mesmo drone convulso de órgão remetido para som de fundo, a profundidade da voz de Youngs nunca conseguiu atingir o efeito de envolvência que se desejaria.

Quando em trio, Youngs revelou-se satisfatoriamente mais inventivo, mesmo que nunca tenha arriscado uma prestação vocal mais arisca. Sempre sereno, de pé em frente ao microfone. Imagem mais do que adequada para tudo aquilo que se ouvia. Num registo algo próximo do David Sylvian de Manafon, sem que soasse a tal (antes pelo modo como se coordenavam entre si os discursos fluídos dos intervenientes), a actuação fez-se de um modo algo cíclico, com o primeiro tema a repetir-se no final, depois do tal spoken word (haverá mesmo necessidade para tal?). Momento esse, feito de uma beleza em suspensão, mas ainda assim a instalar uma certa frieza apesar das notáveis prestações individuais de cada músico. Foi como se a comunhão, por alguma razão extra-sensorial, nunca se revelasse.

Destacando individualidades, sabe-se de antemão do savoir faire dos músicos envolvidos, e obviamente que a gestalt não iria falhar. Talvez tenha sido demasiado volátil. Manuel Mota mostrou o seu lado mais Loren Connors (particularmente nos minutos iniciais), na senda dos blues fragmentados que tem vindo a trilhar com uma soberba sensibilidade. No órgão, David Maranha mostrou-se o elemento mais discreto, arrancando notas suspensas de um conforto intrigante. Ao segundo tema, Maranha atira-se ao violino em modo Tony Conrad, construindo os alicerces daquele que foi o momento mais expansivo do concerto, com espaço para “solos” mais exuberantes (mas nunca de um modo gratuito) de Mota. Brilhante peça entre a contenção e a inquietude. Acima de tudo um inclassificável monumento à música enquanto espaço para uma nada feito de beleza. Algures (ou nenhures), pairou o fantasma do concerto de Jandek (com quem o escocês já colaborou) neste mesmo espaço. Um estranho (ir)reconhecimento.

Regressando à temática da comunicação, o acontecimento dessa noite, escapa facilmente a qualquer tentativa de categorização. Esta observação, servirá apenas o propósito de noticiar um concerto que apenas a presença poderia levar a algum tipo de classificação mental. Imune a referenciais, aquilo que o trio mostrou foi que, por vezes, a comunicação revela ainda demasiados segredos para um entendimento uno. A compreensão nem sempre é necessária.

Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
23/06/2010