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Antony and the Johnsons
Casa da Música, Porto
29/05/2005


Não restam dúvidas de que Antony é uma das maiores figuras musicais do momento. E se ainda restassem, os três concertos agendados para Portugal – os primeiros com a companhia dos seus Johnsons – deveriam chegar para eliminar de vez todas as incertezas. Os tempos em que actuava em clubes nocturnos e em bares de Nova Iorque parecem cada vez mais longe e esse afastamento deve-se muito a I am a Bird Now e à fama cada vez mais crescente de Antony. E com justiça. E a notoriedade de Antony em Portugal é tanta que, a certa altura, o concerto passou do Pequeno Auditório, um espaço com lugar para 300 pessoas, para a sala maior da Casa da Música com capacidade para 1238 lugares. É escusado falar ainda da influência de David Tibet (Current 93), Lou Reed ou Laurie Anderson, os seus padrinhos musicais; muito menos será necessário falar-se da riqueza e renome das participações especiais em I am a Bird Now (Devendra Banhart, Lou Reed, Boy George e Rufus Wainwright). A verdade é que Antony encontrou um lugar só seu e a partir de agora o céu é o limite. A sua voz, em muito devedora a uma Nina Simone, é um dos elementos essenciais da ascensão deste anjo mas não é tudo.

Um concerto deste género numa sala como o Grande Auditório da Casa da Música adquire uma dimensão absolutamente diferente. O luxo e a imponência da sala (cheia) jogaram e bem com a excelência das composições de Antony. Mas nem foi Antony o primeiro a entrar em palco, mas sim os Johnsons: Julia Kent no violoncelo, Maxim Moston no violino e por vezes na guitarra acústica, Rob Moose na guitarra acústica e esporadicamente no violino e Jeff Langston no baixo. O concerto haveria de começar com uma introdução de Moose na guitarra acústica (por vezes a fazer lembrar Ben Chasny) mas todos esperavam a entrada de Antony, que surgiu em palco pouco depois - surpreendentemente - com longos cabelos e – nada surpreendentemente – com a indumentária que lhe é característica. E começaram as canções – todos ansiavam ouvir aquela voz pura e cristalina. Antony fez questão de fazer constantes ziguezagues pela sua carreira, apresentar canções dos seus dois discos de originais, dos dois EPs e ainda algumas versões de outros artistas, que visivelmente admira. E foi com a belíssima e quase trágica história de uma senhora (“My Lady Story”, do mais recente disco de Antony and the Johnsons, I am a Bird Now, editado pela Secretly Canadian) que lhe ouvimos a voz pela primeira vez. E quase que se sentiu uma atmosfera de alívio por se saber que era tão perfeita como nos discos, que nada podia correr mal a partir dali. Em “My Lady Story” Antony, diz-nos: “My lady story / Is one of annihilation / My lady story / Is one of breast amputation”. Logo a seguir, foi ao baú, pegou no seu álbum de estreia e mostrou-nos a ainda mais dramática “Cripple and the Starfish”, canção onde se debate com a felicidade e a dor, a ambiguidade de ambas, o masoquismo do amor: “It's true I always wanted love to be / Hurtful / And it's true I always wanted love to be / Filled with pain / And bruises”.

Os Johnsons, competentíssimos, tanto põem em marcha um duo de guitarras como a seguir se transformam num trio de cordas (dois violinos e um violoncelo). Em “The Lake”, a brilhante rendição do poema de Edgar Allen Poe, Antony faz maravilhas com a sua voz e deixa meia dúzia de almas à deriva quando repete “My infant spirit would awake / To the terror of the lone lake”. Chamem-lhe rainha do drama, chamem-lhe poeta da dor e da perda, anjo que se debate com a ambiguidade sexual. Logo em “For Today I am a Boy”, Antony antevê a sua transformação em mulher, mas sublinha que por enquanto ainda é uma criança, um rapaz. Ao seguir a ordem de I am a Bird Now, vai ao encontro de “Man is the Baby” onde, por entre profundos arranjos de cordas, Antony pede: “Forgive me, Let live me / Set my spirit free”. O delicado piano, aquele de onde Antony nunca saiu a não ser para abandonar o palco, é apenas mais uma parte do seu corpo, o veículo por onde exterioriza aquilo que sente. Depois de uma versão para “The Guests”, um original de Leonard Cohen, Antony pegou no EP I Fell in Love with a Dead Boy para apresentar a canção a partir da qual esse mesmo EP ganhou nome. Aqui, Antony é mais directo do que nunca; tão directo que se fosse nas palavras de outrém, pareceria imensamente ridículo: “I fell in love with you / Now you're my one, only one / 'Cause all my life I've been so blue / But in that moment you fulfilled me”. “I Fell in Love with a Dead Boy”, a história sobre uma paixão por um rapaz morto, volta a trazer ao de cima o tema da ambiguidade sexual: ”Oh, such a beautiful boy / I'm asking / Are you a boy or a girl? / Are you a boy or are you a girl? / Are you a boy or are you a girl?”.

Em comparação com aquilo que aconteceu, por exemplo, na visita ao Passos Manuel, altura em que Antony abriu para as Cocorosie, o autor de I am a Bird Now mostrou-se pouco comunicativo, e sem razão aparente. A certa altura, mostrou um pouco mais o seu verdadeiro espírito e incitou o público a cantar uma canção cujo refrão rezava assim: “Dust and Water / Water and Dust, Water and Dust”. E durante alguns minutos, a entusiasmada plateia da Casa da Música cantou e bateu palmas até se aperceber que Antony estava satisfeito. Mas isso era apenas a primeira parte da canção. De seguida, Antony pediu aos presentes que murmurassem em dois tons diferentes: um para as senhoras, outro para os senhores. Enquanto isso, Antony entoou algumas palavras e o momento foi-se tornando cada vez mais mágico e distinto. O som dos murmúrios misturava-se com a voz de Antony criando uma espécie de esfera de encantamento. Seguiu-se ”You are my Sister”, canção que em disco conta com a voz do seu ídolo Boy George. Um pouco mais à frente, duas das canções mais apetecíveis de I am a Bird Now: “Bird Gerhl”, a história de uma rapariga que anseia a sua ida para o céu pintada de belíssimos arranjos de cordas, e a esperança autêntica de “Hope There’s Someone”, onde Antony, ainda e sempre ao piano, confessa: “Hope there's someone / Who'll take care of me / When I die, will I go ”.

No final de “Hope There’s Someone”, os habituais agradecimentos em forma de vénia levaram Antony e os Johnsons a abandonar o palco mas haveriam de voltar ainda duas vezes. Na primeira, para interpretar “Candy Says”, um original de Lou Reed. Na segunda, para voltar ao seu disco de estreia, o homónimo Antony and the Johnsons, e apresentar uma canção que retrata o rio que em tempos Antony observava a partir da sua janela; em “River of Sorrow”, Antony conta: “There is a black river / It passes by my window / And late at night / All dolled up like Christ / I walk the water / Between the piers”. Algures no espaço para os dois encores, Antony confessa-se espantado com a sala da Casa da Música e adianta ainda mais: começa por dizer que na sua última visita ao Porto havia observado que inúmeras casas estavam à venda junto à Foz (junto ao McDonalds, disse o próprio) e que agora só restavam duas. Depois de pedir que alguém lhe guardasse uma (pois manifestou o interesse em vir viver para o Porto), partilhou com os presentes a admiração que sente pela beleza da cidade, essencialmente a beleza natural que é a parte junto à Ponte de D. Luís I. E não é para admirar. E o que já não surpreende igualmente é o talento nato de Antony, alguém que nasceu para estar no lugar que agora está. A noite na Casa da Música, essa, foi mágica, e teve em Antony a sua maior estrela.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
29/05/2005