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Bonnie “Prince” Billy / Susanna
Teatro Aveirense, Aveiro
06/06/2010


Um Will Oldham apaixonado é capaz de mover muito mais do que montanhas. As pessoas acedem numerosamente ao Teatro Aveirense à procura de um concerto e o que levam dali é um pedaço de vida, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Assim acontece também porque Bonnie “Prince” Billy (o nome de guerra de Oldham) não está com meias medidas na assunção da sua pluralidade: se lhe apetece ser tão country como a fivela de um vaqueiro, então é isso que temos; se, em vez disso, prefere arrumar as palavras debaixo de um cobertor folk, a verdade nessa opção é equivalente.

Em Aveiro, Bonnie “Prince” Billy foi, em primeiro lugar, pornográfico e só depois sublime; inverteu por completo o hermetismo do mais recente álbum The Wonder Show of the World atribuindo-lhe uma expressividade que desafia todas as apostas. E depois vem o paradoxo que ata o nó da noite inesquecível: aquele homem que se dá a conhecer através de contrastes é muito provavelmente um dos mais constantes e fiáveis poetas dos últimos muitos anos (a Era Drag City).

A paixão de Will Oldham é de facto tão imensa que chega para salvar Susanna and The Magical Orchestra do coma artístico que ocupa as sete ou oito músicas interpretadas pela norueguesa. Foi assim que se sucedeu uma primeira parte informal: sentada ao piano, Susanna canta num registo cristalino, que tem tanto de doce como de entediante, enquanto troca com Oldham uns olhares que nos fazem crer que aquelas canções podem bem ser preliminares para noites que não ficam por ali.

Susanna é uma loira de porte vistoso (vulgo: boa) e veste uns calções curtos que piscam o olho. Ainda assim, a norueguesa não facilita a vida de quem estiver interessado em descobrir um “B” entre uma sopa de letra que só parece conter a letra “A”. Susanna teve a sorte de encontrar em Bonnie um bom parceiro para acrescentar algum valor calórico aos coros das suas canções perfeitamente frágeis. Alguém referia acertadamente que pareciam os “ABBA drunfados”.

Enquanto escuta caseira, The Wonder Show of the World, o disco gravado com Emmett Kelly e Shahzad Ismaily (ambos presentes e formidáveis em Aveiro), proporciona o mesmo tipo de sensações de adormecimento e muitos momentos de intocável solenidade (próximos das ultra-discretas torch songs). Ainda que a noite incida principalmente nesse mesmo álbum, o corpo de Bonnie “Prince” Billy vem carregado com uma eloquência eléctrica que rasga logo ali o guião e que faz com que cada canção tranquila seja um mote para algo imprevisível que nunca poderia acontecer em disco. É por essa via que chegamos à renovada teatralidade-gospel de “Go Folks, Go” (o primeiro sinal de noite ganha) ou ao testemunho de maturidade partilhado com “Kids” (final perfeito e promessa incerta de mais 20 anos de estrada). Canções nem sempre marcantes nos auscultadores, mas gigantes em Aveiro.

O muito solicitado encore é feito sem qualquer amplificação e revisita duas canções sagradas acerca de noites de copos: “I See a Darkness” e “Me and Paul” (um original de Willie Nelson, fetiche do próprio Billy). Daí resultou uma comunhão espiritual que fica para os que lá estiveram, até porque não conhece tradução exacta em palavras. Bonnie “Prince” Billy está visivelmente apaixonado e um assunto dessa importância deve permanecer em aberto.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
10/06/2010