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Victor Gama
Teatro Maria Matos, Lisboa
18/05/2010


A singularidade de Victor Gama atinge-nos logo nos momentos que antecedem a sua prestação. Isto porque, enquanto extensão do seu criador, os três instrumentos (o acrux, a tohan e o dino) visíveis em palco são de tal forma desiguais e fascinantes que muitas vezes começam a soar na imaginação mesmo antes de alguém lhes tocar. Tal estímulo não deve, mesmo assim, ser estranhado, quando o próprio Victor Gama admite tantas vezes a mitologia e os sonhos dos povos esquecidos como factores na engenharia, design e musicalidade dos seus Pangeia Instrumentos.

Apesar das raízes que o associam a Portugal, Victor Gama raramente actua em palcos nacionais (pelo menos ultimamente). A apresentação da nova peça SOL(t)O é, por isso, de valor acrescido, e ainda mais depois de recentemente ter sido sujeita a um novo arranjo a convite de David Harrington, do venerável Kronos Quartet, para que assim fosse apresentada no Carnegie Hall, de Nova Iorque, em Março passado.

Ao nível de um Carnegie Hall, suponho, o Teatro Maria Matos revela condições altamente favoráveis para o contacto com a acústica riquíssima destes instrumentos, que Victor Gama toca de modo perfeitamente físico (com pontuais efeitos) e em jeito de acompanhamento para um filme (um road movie) de travessia numa paisagem desoladora de Angola (creio). As legendas do filme apontam para uma conspiração política algo complexa, mas a noção que sobra é a de que determinado investigador (Prof. Augusto Zito) sabia demais acerca de ogivas nucleares e de como o progresso ocidental contribui tantas vezes para o esgotamento dos recursos em África. O relato é credível.

O que muito facilmente podia passar por acção panfletária (ainda assim pertinente), ganha enorme força e motivos de interesse com a música de Victor Gama, que não só preenche a narrativa, como também sublinha o aspecto desolador daquelas casas, recorrendo a passagens por vezes dramáticas (principalmente, no final, com o dino) e a alguns apontamentos de sonoplastia sugestiva (no início). Ao descobrir toda esta dinâmica e riqueza numa paisagem africana à partida desgastada, Victor Gama volta a ser o agente (e o milagreiro) capaz de amplificar a fertilidade de uma herança musical que ecoa no espaço, independentemente da sua aparência.

E é essa fertilidade intrínseca aquela que se escuta no acrux e em todo o maravilhoso que profere em conformidade com os dedos de Victor Gama. Depois de absorvidos e serenados pelo acrux, é ainda maior a surpresa provocada pela toha, que chega mesmo a insinuar, de modo paradoxal, a música mais ampla de Ry Cooder (por mais incrível que isso pareça) e o intimismo do koto japonês. No final da actuação, o público é convidado a tocar os Pangeia Instrumentos. Ninguém se acanha (eu tentei uma versão de “Iron Man”, dos Black Sabbath, no acrux). Assim, a enorme generosidade (e a singularidade, lá está) de Victor Gama volta para casa com cada um dos presentes.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
20/05/2010