Festival para Gente Sentada 2010
Cine-Teatro António Lamoso, Santa Maria da Feira
26-27/02/2010
Por altura da sexta edição, o Festival para Gente Sentada conta já com um historial de momentos clássicos (2004 reuniu Devendra Banhart e Sufjan Stevens num só cartaz) assente numa bem definida estrutura que divide seis escritores de canções por dois dias (2x3). A edição deste ano voltou a abrigar as pessoas do mau tempo num acolhedor auditório que percorreu os diferentes extremos da canção.
Encarregado de encetar o festival, o casal Matt Valentine e Erika Elder colocou a sua agricultura celestial ao serviço de quem estivesse interessado em viajar nos braços de uma folk magnificamente cerebral. Entre outras revelações, a trip serve para verificar como o slide de Erika Elder estabelece um bonito contacto com um Neil Young mais sensível aos diversos climas. Perto do fim, Matt Valentine convida até ao palco Sir Paul Labrecque (um dos membros fundadores de Sunburned Hand of the Man e sósia de Andy Warhol) para, com um banjo tocado com arco, alinhar numa raga de força enorme. O transe na música de MV & EE levou-nos por Santa Maria da Feira, Vale do Antuã, Bogotá e Jerusalém. Foi necessário o regresso do silêncio para voltarmos aos cadeirões do Cine-Teatro António Lamoso.
Pouco depois, Perry Blake assumiu a postura de um crooner que está em Santa Maria da Feira como poderia estar em Hollywood a revisitar canções mergulhadas num Martini on the rocks. Estranhamente ou não, o irlandês optou, desta vez, por uniformizar o seu cancioneiro no sentido exclusivo da voz e piano (tocado por um segundo músico). Com isto, perdem-se alguns revestimentos electrónicos e a profundidade dos originais. Ainda assim, as qualidades de um par de canções (“Califormia” e “These Young Dudes”) prevalecem, mesmo que o barroco na voz de Perry Blake também não ajude muito. Entretanto temos o privilégio de escutar um tema country muito próximo de tantos outros supostamente alheios ao género. Sobra a suspeita de que um imaginário disco de crooner ao piano era o que bastava para transformar um próximo concerto de Perry Blake num festim rock.
Na posição do mais aguardado nome do festival, Bill Callahan chega ao Gente Sentada sem qualquer necessidade de acrescentar o que fosse ao que já devíamos saber: a grandeza destas canções, cada vez mais apostadas em encobrir dor com rios e passarinhos, representa sempre argumento suficiente. E assim foi a prestação de Bill Callahan no Gente Sentada: brutalmente suficiente na travessia do recente Sometimes I Wish Were An Eagle (só três ficaram de fora) e sem margem para mais que um par de repescagens Smog (uma “Bathysphere” irrepreensível e “Say Valley Maker” com um prolongamento de bom estrilho). Brutalmente suficiente também por se ter restringido a um dos formatos mais básicos e autênticos do rock norte-americano – aquele que, para existir, necessita apenas de bateria (milagre nas mãos de Neal Morgan), guitarra e voz. Ou seja, sem violinos, as últimas canções deixam a descoberto a peculiar expressividade na voz de Bill Callahan, que também desenvolveu os seus próprios passos de dança (alegres como as abelhas) desde que actua em nome próprio. E todo este suficiente (sem encore) equivale a muito, quando ali estava um dos grandes escritores de canções do nosso tempo. Podemos perder tempo a espreitar os mais generosos alinhamentos dos concertos anteriores (ai Vigo!) ou dedicar esse mesmo tempo às lembranças de uma noite que fica para sempre.
Não é preciso ser especialmente patriótico para perceber que Noiserv, o único artista nacional representado no cartaz, mereceu cada um dos minutos que ocupou na primeira hora do segundo dia. Rodeado por teclados, um glockenspiel e um metalofone, David Santos (Noiserv) necessita apenas das suas canções para justificar a sua presença. Canções essas que parecem documentar dias cinzentos num reino distante. Tal como o desenho de fundo, que, em tempo real, vai ganhando nuvens e pontes, no laptop operado pela prima Diana Mascarenhas, também as músicas de Noiserv vão acumulando ou perdendo elementos, num jogo de composição que aborda temas adultos com as cores de uma palete de criança. E, se “Bifo” é uma amostra fiável do que aí vem, podemos ir já afiando as facas.
Depois de Noiserv, eis que surge o mais penoso momento do festival, quando a gente sentada sofre colectivamente com as canções de Dakota Suite, aqui solitariamente interpretadas pelo mentor Chris Hooson. Dizer que o homem vive rendido à melancolia é pouco: uma em cada duas músicas fala de suicídio. Como se isso não fosse suficientemente incómodo, Chris Hooson persiste em intercalar as músicas com tortuosos testemunhos pessoais. A congruência vacila quando Chris começa por referir que todas as canções são inspiradas pela noiva, acrescentando, de seguida, que determinado tema relata o dia em que “chorou como uma criança” por causa de certa reviravolta do Everton. A subtileza ficou em Liverpool. A pretensão, sim, está lá em cada fotografia e num Chris que se disponibiliza para responder a questões que ninguém quer fazer. O pior é reparar que a diferença entre as músicas é igual à que separa o branco do mais branco. O embaraço leva a que algumas pessoas abandonem a sala. Trezentos bocejos não podem estar enganados. Tudo isto culmina em provincianismo, quando Chris Hooson diz que “Lisboa é uma merda”. Sim, o Cardozo pode ser pretexto para canções bem tristes.
No seguimento de tão deprimente demonstração, a pop açucarada (twee!) dos Camera Obscura consegue ser ainda mais eficaz como antídoto para todo o tipo de males que, aos poucos, possam ocupar a vida de estudantes nem sempre capazes de conjugar obrigações académicas com corações destroçados. Muito mais fácil que isso é ficar refém de canções como “Tears for Affairs” ou “Forests and Sands” à medida que o charme de Tracyanne Campbell (impecável senhora da frente) e Carey Lander (teclista que apetece levar a beber uns copos) surte o seu efeito. Em pouco tempo cai também por terra aquele equívoco que associa constantemente os Camera Obscura aos Belle & Sebastian – os primeiros são bem mais despreocupados e transparentes. Além disso, a banda escocesa provou ser subtil na resposta tardia a Lloyd Cole, na passagem por “Lloyd, I’m Ready to be Heartbroken” (momento para levar para casa), e vigorosa na mini-apoteose My Bloody Valentine que encerrou “Razzle Dazzle Rose” e o concerto. A Camera Municipal da Fofura ganhou certamente mais uns quantos eleitores no Gente Sentada. Nuno Catarino pode continuar a dormir descansado.