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FMM Sines 09 - Lee “Scratch” Perry / Alamaailman Vasarat / James Blood Ulmer
Castelo, Sines
25/07/2009


Durante oito dias, Sines é a Las Vegas das músicas do mundo que oferecem nome ao festival. Quem faz o caminho a partir de Grândola, aventura-se por uma longa estrada, peculiarmente desabitada nas imediações, até chegar a Sines, oásis de calmaria, em pleno Litoral Alentejano. Las Vegas também pela concentração de valores de toda a parte e pelas apostas feitas nesta décima primeira edição (foram mais de 20 os projectos eleitos para estreia nacional). Assim proporciona-se o final de tarde perfeito: trauteia-se um ou outro refrão de Lee Perry, como quem canta a ansiedade, enquanto uma ou outra cerveja diminui a temperatura interior. Do castelo avista-se uma bonita marina e da marina avistam-se dois barcos atracados. A Adega de Sines, bem perto do Castelo de Sines, serve o “pinga-amor” como sobremesa, e o nome convence desde logo. Preocupações: zero.

Dentro do Castelo, a sorte aguardava quem vinha até Sines à procura de prazeres musicais diversos. Apresentado pelo “voz off” (essa entidade espiritual do festival) como um grande senhor dos blues, James Blood Ulmer corresponde às expectativas num registo de verdade restringido a voz e guitarra. Trazia óculos a condizer com o azul do palco e, nos dedos, o caule que salienta a aspereza que encontramos depois suavizada em inúmeras ramificações dos blues. James Blood Ulmer canta os habituais desamores e a desgraça em cada mulher com cauda pontiaguda, como se esse ritual fosse intrinsecamente biológico. Esticou-se um pouco além da hora certa.

Sem demoras, a aproximação da tempestade Alamaailman Vasarat é anunciada e logo se percebe que vem aí chumbo grosso, quando um sósia de Golias ergue os chifres no ar e grita:Vasaraaaat!! A ameaça merece essa recepção: os Alamaailman Vasarat são um sexteto finlandês, que explora uma variante mais fácil do caldo convulso de John Zorn, no ponto de convergência que procura para o jazz, metal e música klezmer. Quem pensar na banda de metal do Pai Natal ou nuns Turbonegro étnicos, não andará longe. Todas as músicas referem-se, de alguma maneira, a escorpiões ou a cobras. Depois, o momento final é anunciado em falso por 6 ou 7 vezes. Quando os Vasarat carregam no pedal e o trompete passa a ser o instrumento do Diabo, as luzes do Castelo movem-se como as de uma prisão alarmada pela fuga do seu mais ilustre ladrão. Apesar do contraste entre géneros, os finlandeses nem sempre conseguiram diferenciar as músicas entre si.

É tudo boa gente, contudo a noite era do Rei que, desta vez, tinha mesmo direito ao seu castelo (não lhe pegou fogo, vá lá, mas houve fogo de artificio em grande). Por esta altura, as palavras Lee “Scratch” Perry devem ser suficientemente sonantes na descrição de um criativo maior que, durante uma vida de inimitável engenho, procurou apenas adequar-se a si próprio, ensaiando, a partir da Jamaica, algumas das principais revoluções (reggae / dub, e além) no que respeita à produção de música na segunda metade do século. Lee Perry não é uma lenda. Ele é A lenda. Aos 73 anos, o upsetter revela o vigor dos 37, enquanto passeia pelo palco um trolley e o traje de rei que atraiu todas as bugigangas de uma loja do chinês ou tenda marroquina. Acompanhado por um quarteto, que dirige requisitando abrandamento rubadub ou não, Lee “Scratch” Perry ainda é a personificação de todas as qualidades que dele fizeram um semi-deus: ele é o toaster negligée (Snoop Dogg e 50 Cent devem-lhe muito nisso); o provocador nato (confessou ter deixado as dread locks na casa-de-banho); o pregador carismático, que cita os mandamentos do céu (não beber álcool e não comer coisas vivas ou mortas(?)). Ele é o pai espiritual dos que não jogam com o baralho todo.

A noite avança e, aos poucos, ganha o aspecto de viagem no tempo pelas diferentes metamorfoses de alguém que sempre se reinventou com uma coragem que já não se usa. Antes de avançar para “To Be a Lover (Have Some Mercy)" (salvo o erro), solicita duas raparigas bem aparecidas para dançar. O Rei acabou por ter ao seu lado um casal, que foi convidado a abandonar o tapete pela mão dos seguranças, até que o artista soberano decidisse frisar que fazia questão (I request. I request.). E o comum mortal não deve desobedecer a Lee Perry, nem mesmo quando “Pum Pum” apela a um dancehall de chulo latino num club americano (faltou apenas a voz da nossa amiga fodilhona Sasha Grey, que marca presença em disco). Houve também “Exodus” (Bob Marley comungado por todos) e, no regresso para “encore”, “War Inna Babylon”, que rebate a velhice com uma frescura que faz falta a muito reggae que por aí se vende como novo (e isco para festivais cinzentos). Estranha-se a ausência dos clássicos “People Funny Boy” e “Give Me Justice”, mas estávamos avisados: ele é o upsetter. Entre e durante as músicas, Lee “Scratch” Perry persistiu na necessidade de um novo Jesus e de um segundo Moisés. Os abençoados pela sua presença podem até não concordar.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
27/07/2009