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Sunn 0)))
Corsica Studios, Londres
22/02/2009


Há quem experimente drogas, quem se imole, quem medite para tentar encontrar uma paz interior, a que muitos chamam “deus”. E há quem atinja esse estado de espírito (ou do que lhe quiserem chamar) através do som. John Cage procurou o silêncio. Sentou-se numa sala à espera de não ouvir absolutamente nada. O som, contudo, estava sempre lá. Acompanhava-o para onde quer que fosse. A partitura vazia não equivalia ao silêncio. Esse era uma ilusão. O que Cage devia ter procurado era algo completamente diferente. Era o vazio através do som total, um tal caos que deixa de ser caos e que, quando visto ao longe, se torna ordem. Isto não é uma crítica a um concerto. Isto é uma declaração de um buraco negro que se abriu no planeta numa destas noites.

No passado domingo, ao entrar nos Corsica Studios, numa zona suspeita de Londres, a sensação imediata foi a de que algo estava errado quando vi os Sunn O))) na Casa da Música. Não são uma banda para se ver num espaço convencional. O caminho deve ser traçado numa sala deste género: muito pequena, completamente negra, onde qualquer direcção indica um amplificador. Particularmente no palco. Muitos amplificadores. A wall of sound nunca fez tanto sentido. É uma parede de amplificadores. Não há como negar o receio daquilo que pode vir a acontecer aos ouvidos. Aliás, por essa mesma razão o bar distribui tampões de borla. Com um aviso em várias paredes: “não nos responsabilizamos por estragos permanentes”. O óbvio.

Stephen O'Malley e Greg Anderson entram em palco. Trajam os habituais robes ao estilo monástico, empunham uma garrafa de vinho cada, pegam nas guitarras que se encontram em cima dos amplificadores. Alguém, claramente sob o efeito de psicotrópicos, grita “só a morte é real”. Os restantes, sóbrios e sérios, riem-se. E é aí que tudo começa. Por mais de hora e meia, os dois homens em palco, auto-intitulados Sunn O))), “tocaram”. Tocaram nas guitarras, sim, literalmente. Mas o verbo tocar aqui não faz sentido. É a Criação, por breves momentos. Fechar os olhos e ouvir o que vinha do palco permitia escutar para lá do que realmente estava a acontecer. A primeira camada era só uma fachada, a porta de entrada para quem simplesmente quer ouvir barulho. É nas restantes coberturas sonoras que se encontra o significado de tudo isto. Era como ouvir a formação de um novo mundo e as nascentes de novos rios e mares, oceanos a serem gerados, o sexo entre sóis e luas, suado, trepidante, incandescente e, acima de tudo, maravilhoso. Por baixo de tudo isso, os pássaros que nascem e cantam, as vozes que se ouvem nas bocas fechadas de todos os presentes, mas principalmente, de quem não se encontra na sala. Por baixo de tudo isso, é o verdadeiro Acontecimento. O palco não importa nada. O que importa são as vibrações que nos puxam e que nos levam a uma entidade comum. O tremer da pele e da carne diz-nos que não estamos ali. Nós não somos os corpos que estão de pé numa sala muito pequena, completamente negra, repleta de amplificadores num certo armazém da capital inglesa. Nós já não estamos ali. É uma viagem ao interior uns dos outros, quando deixamos de viver e passamos a formar um só ser. Momentaneamente é claro. Nem todos somos os janados da frente que fazem cornos para o palco ou que têm as mãos em permanente pose de quem segura um cacho de uvas (um dos quais é o mesmo que gritou a tal frase de só a morte ser real).

Mas toda a masturbação chega a um orgasmo (como este último parágrafo) e assim foi com o concerto. A celebração dos dez anos do grupo, com o lançamento em 1998 dos The Grimmrobe Demos, aconteceu assim, num concerto único no Reino Unido. As duas guitarras acabaram a noite suspensas, sozinhas, sem que o som vindo delas terminasse. Alguém dizia no início: “isto é o século XXI”. Sim, é isto o século XXI. Há quem diga que é a banda sonora para o Apocalipse. Muito pelo contrário.

Tiago Dias
tdiasferreira@gmail.com
24/02/2009