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Sigur Rós / For a Minor Reflection
Campo Pequeno, Lisboa
11/11/2008


É provável e simples a leitura que se pode fazer da fotografia cedida pelo artista Ryan Mcginley para a capa de Með suð í eyrum við spilum endalaust, o mais recente disco dos Sigur Rós. Quatro corpos nus (à excepção dos ténis) atravessam uma estrada. Por justaposição, é possível reparar que os Sigur Rós também são quatro. Tal como os atletas nudistas da capa, a banda islandesa encontrava-se obrigada a abandonar a roupagem de sempre na margem mais segura da sua identidade. Mais tarde ou mais cedo, era forçoso um sprint resumido à sua essência (ensaiado em lançamentos secundários) e, consequentemente, a inevitável sujeição ao risco da transição (a fotografia deixa também em aberto a ameaça de atropelamento por parte da tradição, talvez).

Með suð í eyrum við spilum endalaust é evidentemente um disco de transição (sem o reverb infinito e peso épico de outros tempos), assim como a digressão que passou pelo Campo Pequeno é a que mais vincadamente obrigou os Sigur Rós a uma exposição sem rede (agora que desconhecem a companhia do quarteto de cordas Amiina ou de uma secção de sopro). Vão nus os reis de uma adoração quase incomparável por cá.

Nus e translúcidos, em grande parte dos temas que representaram o último álbum, contudo aperaltados no vestuário: o magnético guitarrista e vocalista Jónsi apresenta-se na sua encarnação mais glam(com brilhantes no rosto), enquanto que o baterista Orri cumpre os primeiros momentos do concerto com um “chapéu reluzente” capaz de encadear alguns dos presentes na primeira fila. Logo de início, as recorrentes "Svefn-g-englar" e "Ný batteri" comprometem-se a deixar bem presente na sala a ideia de que existem atributos que sobrevivem ao tempo (a canção, a envolvência intrínseca de ambas, a reconhecível sonda submarina da primeira). Sem provocar o mesmo espanto e contorção do corpo, o arco que Jónsi arranha na guitarra ainda é bandido num assalto de emoções a que é difícil ganhar imunidade. O rei manda.

Numa noite em que o público e banda se manifestaram reciprocamente rendidos, o maior desafio passava por injectar novidade no corpo de um repertório cada vez mais familiar aos ouvidos internos (os Sigur Rós tocaram em Lisboa 5 vezes em 8 anos). Verdade seja dita: os quatro de Reiquejavique permanecem categóricos na galvanização oscilante dos mesmos crescendos e decrescendos dramáticos, embora nem sempre capazes de conjugar isso com o sentido mais pop das últimas composições. É por isso que a faseada “Sæglópur” conhece eficiência máxima na sua fortíssima travessia do espectro Sigur Rós, desde o xilofone intimo até ao confronto combustivo de piano e ritmo, enquanto que, um pouco antes, o risonho reencontro de irmãos nas teclas repartidas de “Við spilum endalaust” nunca deixa de ser ameno (na sua forma mais dúbia).

Mesmo quando metidos em apuros ou incapazes de conquistar os indecisos, os Sigur Rós contam com uma arma secretamente conhecida por “Popplagið”, apoteótica faixa final de ( ) , que é invariavelmente o money shot e os “doze minutos à Benfica” de um concerto que a tem como peça-chave. Na sua cavalgada cumulativa, “Popplagið” combina uma força sobrenatural tal que nunca deixará de ser argumento válido para retirar os coelhos da toca e encaminhá-los até onde se reza a missa. As contas finais fazem-se, numa escala de 1 a 10, com a mesma simplicidade da primeira leitura: o factor “Popplagið” acrescenta por si só 3 pontos aos merecidos pela restante prestação (5+3=8, nas minhas contas). A matemática islandesa dita o resto: cada um dos parênteses de ( ) equivale a uma fracção. A soma será sempre o que se encontra no interior.

Na primeira parte, os For a Minor Reflection tropeçaram em todos os prejuízos e clichés pós-rock de quem se acha no direito de cozinhar o bolo Mogwai / Explosions in the Sky como se fosse seu. Redimiram-se depois na precursão festiva que ofereceram à aurora singular de “Gobbledigook”, acompanhada por palmas colectivas e chuva de confettis.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
12/11/2008