Six Organs of Admittance / Wooden Shjips / Sic Alps
Caixa Económica Operária, Lisboa
07/11/2008
Agora que até já é porreiro celebrar uma exportação norte-americana sem complexo (apenas alguma cautela), alguém ávido de rock ianque é obrigado a dar graças pela generosidade verificada na Caixa Económica Operária, mí(s)tica sala de Lisboa, na noite única em que recebe Six Organs of Admittance, Wooden Shjips e Sic Alps. Há que molhar os dedos em água benta antes de aplaudir tão representativa amostra de rock parido em São Francisco, na Califórnia. Rock destinado a ocupar um lugar mais refundido que as laranjas vistosas, na roda alimentar do solarengo estado norte-americano.
Incumbidos de lançar ao ar o foguete de partida, os Sic Alps encarnam implacavelmente a ideia de que uma banda não precisa de ser maciça ou virtuosa para ser tão sumarenta como a laranja mais apreciada. O título do último álbum, U.S. EZ (EZ lê-se easy), revela laconicamente tudo o que importa saber sobre Matt Hartman e Mike Donovan: a essência mais bastarda da América é, afinal de contas, facilmente traduzível numa guitarra e bateria armadas com sentido prático e só depois emaranhadas em eco. Sem complicações ou mensagens profundas. Sem obstáculos que impeçam os Sic Alps de tantas vezes cultivarem óptimas canções onde normalmente só a imundice cresce. Tal como acontecera há quase um ano no Maxime, o tempo dos Sic Alps em palco resulta num acidente altamente produtivo (partem-se cordas, tombam tripés, alguns temas conhecem finais improvisados) com a diferença de, nesta ocasião, ser muito mais perceptível o à vontade mantido pela banda (Mike Donovan estava descalço e teve direito a cócegas de um estranho). Impressionante é reparar em como nunca deixa de ser estupidamente eficaz o desdobramento instrumental dos Sic Alps à medida que Matt e Mike trocam de posição. Quem dera a muitos quintetos apresentarem a versatilidade destes dois forasteiros.
Sem conceder tempo para recuperação de fôlego, o anfitrião dos intervalos, Zeca dos discos, foi uma vez mais certeiro na selecção de obscuridades (nuggets) personalizadas que mantiveram o calor do amplo espaço da Caixa. Salvaguardando a ilusão de recuo temporal imposta pelos discos escolhidos, os Wooden Shjips necessitam de escassos minutos para demonstrarem que a próxima meia-hora pertenceria a um rock de fundo de baú, todavia sujeito a uma circularidade quase sexual que estabelece baixo e bateria como torres de controle rítmico para os voos a solo da guitarra guiada pelo vilão bíblico Ripley Johnson. Sempre acima das 70 milhas por hora, “Death’s Not Your Friend”, por exemplo, é esticada até ao ponto de ser difícil apontar onde começou a corda (muito mais longa do que em disco). Os Wooden Shjips divertem e criam envolvência psicadélica, desconhecendo às vezes a medida certa para essa tarefa.
Quem conhece bem os cantos à casa é Ben Chasny, guitarrista dos endiabrados Comets on Fire e músico itinerante, que, sem grande cerimónia ou palavras óbvias, trata de reunir os três executantes em palco e o numeroso público presente, como se fossem parte de uma mesma família Six Organs of Admittance prestes a alinhar numa peregrinação estilisticamente inominável, por ser demasiado tempestuosa para se assumir apenas como folk e inversamente contemplativa, ao ponto de não se resumir ao rock puro. Depois de inúmeras actuações a solo de SOOA por cá, Ben Chasny conhece a sorte de ter ao seu lado um baterista predestinado para o efeito e uma guitarrista, que não é mais do que a sua namorada Elisa Ambrogio, imprevisível vulcão feminino que normalmente (des)equilibra os Magik Markers (protagonistas de um excelente concerto há alguns meses). Ao longo da noite, é possível observar a cumplicidade que une Ben e Elisa, quer nos momentos mais eléctricos quer no sussurro doce dos duetos quase country (“Strangled Road” foi soberba), à medida que se torna mais nítida a noção de que o último (e desta vez dominante) Shelter From the Ash era afinal um disco de redoma para uma relação (visivelmente intensificada no confronto apaixonado entre as guitarras do casal). Some-se a isso toda a alma, intimismo arrepiante e fraternidade de “Lisboa” (tocada na cidade que a originou) e uma versão bem mais apoteótica de “School of Flower” (onde vale tudo e tudo valeu), e não é um exagero demarcar a noite de 7 de Novembro como o mais convincente e tocante sumário de toda imensidão Six Organs of Admittance contada da frente para trás.