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dEUS / Os Pontos Negros
Teatro Sá da Bandeira, Porto
21/10/2008


O relógio marca 20h15. A cidade do Porto encontra-se absorta pela prestação do FCP, prestes a sucumbir perante o Dínamo de Kiev. Na rua de Santa Catarina, artéria central da Invicta, a calmaria tomou conta do lugar. À entrada do mítico Majestic, uma voz quebra o silêncio. Alguém está a falar ao telemóvel, em língua inglesa, indiferente à Liga dos Campeões e ao desgosto que em breve será infligido em meia cidade enfiada nos cafés. Esse alguém é Tom Barman, o senhor que duas horas depois, servirá de bálsamo a muitos adeptos feridos que esperam, com o concerto dos dEUS, salvar a noite. Às 20h15, porém, ninguém parece importar-se com esta figura algo sofisticada no meio do triste cenário de abandono da Baixa. E, volvida meia hora, o cenário mantém-se, com Barman tranquilamente a ler o jornal na esplanada do café, onde a sua presença parece passar totalmente despercebida. Não resistindo a convocar o mais comum dos clichés associados à banda belga, a pergunta parece impor-se: sentir-se-ão os portugueses descrentes em dEUS?

Chegada a hora da verdade, a dúvida deixa de subsistir: Tom Barman e demais nunca caíram no esquecimento da extensíssima base de apoio que detêm em Portugal e que cedo os colocou num altar. Comenta-se com frequência que a banda apresenta um maior número de seguidores no nosso país do que na sua terra Natal. Esta afirmação perde em espectacularidade quando se apresenta uma explicação razoável para tal: o Sul da Bélgica (francófono) não revela grande apego ao que na Flandres se faz (e os dEUS provêm da flamenga Antuérpia) e concentra maior atenção na música afecta à francofonia. Adiante. O Teatro Sá da Bandeira esteve à pinha para ouvir o novo disco, Vantage Point, e reviver os clássicos que, por infindáveis vezes, os dEUS já revisitaram em território luso.

Para o início da contenda, a banda escolheu “When She Comes Down”, tema que dá o pontapé de saída do álbum lançado este ano, um registo que reconcilia os belgas com a crítica que maltratou o antecessor Pocket Revolution. À semelhança da crítica, o público do Porto revelou uma pronta assimilação deste progresso e o seu entusiasmo repartiu-se entre os momentos fortes de Vantage Point (a melodia penetrante do single “The Architect” à cabeça) e as recordações que os anos esbateram, mas que Tom Barman não se mostrou rogado em invocar. E foi ver braços no ar eufóricos e delírio generalizado na passagem por “Instant Street”, trunfo aproveitado ao máximo, e histeria transbordante aquando de “Nothing Really Ends”, a única razão pela qual o mundo se lembra da compilação No More Loud Music. Em palco, esfalfam-se como adolescentes que pretendem impor a todos que são a melhor banda do mundo. Não o são, mas, durante duas horas, pareceram ter diante de si o melhor público do mundo.

“Não somos dEUS, mas também somos filhos de Deus”, a afirmação é do colectivo Os Pontos Negros, destacados para a primeira parte. Ainda no encalço dos trocadilhos de quinta categoria, poderíamos responder à banda dizendo que nasceu com o rabinho voltado para o céu (ou para a lua, diz-se), a julgar pelos rasgados elogios de que vem sendo alvo o seu rock imediato, de que já não havia memória desde que Tim, Zé Pedro e companhia resolveram entreter a populaça e alimentar os seus vícios. Os Pontos Negros não têm, contudo, letras sofríveis e oferecem um comovente esforço de reinvenção do estafado cancioneiro rock português, um exercício dificílimo ao qual importa dar algum crédito. Valha-lhes isso.

Eugénia Azevedo
eugeniaazevedo@bodyspace.net
25/10/2008