Veteranos respeitadíssimos. Velhos. Glórias do passado. Nomes novos. Gente que há meio ano não era absolutamente nada. Homossexuais. Transsexuais. A música de dança como rock. Friques aprovados pela malta da Linha graças às ligações com o surf. Era basicamente nisto que consistia o cartaz do Optimus Alive, mais coisa menos coisa.
Dois palcos, com uma espécie de secção electrónica no meio que passou demasiadas vezes uma (muito má e inútil) remistura drum’n’bass de “Hip Hop” dos Dead Prez, um clássico das pistas de dança cujo beat original é muito mais destruidor que qualquer reorganização do
amen break e, por cima do arco da entrada por onde as pessoas passavam, uma banda de versões rock que, pelo menos no último dia, fez uma versão de “Highway to Hell” dos AC/DC que faria Bon Scott repetir a bebedeira que o levou à morte sem hesitar um único segundo.
Comece-se pelo início, pelo menos pelo início da minha passagem pelo festival, ou seja, pelo Metro on Stage, quase às sete da tarde de uma quinta-feira de Julho. A hora faz toda a diferença, já que o Metro on Stage não foi concebido para ser tolerável por gente com peso a mais que escolheu deixar crescer pêlos faciais. Pelo menos à tarde, com o sol a bater e a lotação desde palco semi-fechado (“semi” porque, apesar de estar rodeado por entradas em três dos lados, é coberto e funciona como um espaço fechado, só que com a agravante de se poder fumar).
Foi este palco demasiado cheio e com demasiado mau som que recebeu os Vampire Weekend. Podia pensar-se que a beira-rio é o melhor sítio para ouvi-los, já que o ar betinho (elogio) remete para a área marítima. Mas para quem os viu um mês antes mesmo ao lado do mar e de barcos a sério no Primavera Sound em Barcelona, a horas decentes (duas da manhã) com melhor som a realidade é outra. E em ambos os concertos faltava alguma coisa.
Vampire Weekend é bestial, inescapável, a pop betinha (elogio outra vez) misturada com as guitarras e batidas africanas, bons arranjos, letras inteligentes que rimam reggaetón com Benetton e Louis Vuitton e tanto falam de Peter Gabriel quanto de Lil’ Jon e todas aquelas coisas que foram discutidas minuciosamente desde se começou a ouvir falar deles. Primeiro o burburinho começou com críticas elogiosas a concertos no New York Times e na New Yorker. A lgures no final do ano passado um CD-R que eles vendiam nos concertos começou a circular na internet e os óptimos primeiros dois singles foram lançados em 7”, quando a banda ainda não tinha contrato com a XL.
As malhas do disco, uma canção nova – ouvi-la a primeira vez e repetir um mês e pouco depois é suficiente para ficar a conhecê-la (elogio) – e o lado b que vinha nesse CD-R e no single de “Mansard Roof”(“Ladies of Cambridge”, antes conhecida como “Boston”, uma das melhores canções dele) fazem o alinhamento. Mas não há muito mais que isso, ao vivo não convertem ninguém, não tiram dúvidas, cumprem apenas. E também falta mais material para entreter as pessoas, que os adoram intensamente e dançam entusiasticamente (e batem palmas antes do fim de “Ladies of Cambridge”).
Logo a seguir, no mesmo palco e com o mesmo calor, os MGMT, intensamente mais chatos ao vivo que em disco (onde há ideias e canções boas), com solos pouco interessantes e muito pouco para oferecer para além do reconhecimento das canções e da dúvida “o baterista é um homem ou uma mulher?” E, claro, “Time to Pretend”, sempre na fronteira da sobreexposição irritante.
Já mais à noite, Hercules and Love Affair, donos de um disco de estreia magnífico com o selo de qualidade da DFA e canções bestiais que não valem só pela transformação de Antony Hegarty de diva insuportavelmente choninhas em diva disco. E isso nota-se ao vivo, sem Antony, com Nomi, a vocalista transsexual com uma grande presença em palco, a comandar tudo. Uma banda completa, com duas pessoas nas teclas, um baterista, um baixista, um trompetista, um trombonista, uma DJ/vocalista que transformam as canções de
Hercules and Love Affair num DJ set orgânico, esticando-as e fazendo delas algo novo e diferente sem nunca aborrecer. Inacreditável se se tiver em conta que só começaram a dar concertos em Maio. Neste que foi um dos melhores momentos do festival houve também direito a uma versão de “(Don’t Fear) the Reaper” dos Blue Öyster Cult (estranhamente, tendo em conta a canção que é e o facto de isto ser música de dança, sem cowbell).
No palco principal, adianta acima de tudo falar dos Rage Against the Machine, força destruidora, panfletária, a ideia de uma banda rock como uma banda de hip-hop (pirotecnia na guitarra em substituição de scratch no gira-discos enquanto Zack de la Rocha diz “check out my DJ”), tudo sempre baseado na música negra (não só por de la Rocha ser um MC e não um vocalista normal de banda rock, mas também pelo acompanhamento) e os clássicos todos a soar tão bem como antes e a cansar tanto como cansavam antes (no bom e no mau sentido). Referências a Saramago e à revolução antes e mosh e imensa gente cujo propósito na vida é estar ali e reviver a juventude (e a ainda bem). No segundo dia houve Dylan e Buraka Som Sistema. O chapéu de cowboy, sempre no órgão, os arranjos diferentes que espoletam o jogo “mas que raio de canção é esta que ele está a tocar?” que se ganha ao conseguir discernir, no meio da voz mais grave, completamente alterada, presume-se, pelo álcool e a idade, uma ou outra palavra. Um concerto interminável, para convertidos, para quem sentiu o chamamento de Dylan cedo na vida, que conhece a discografia do início ao fim, que ouve cada palavra e cada poema e cada canção como se fosse o melhor que já se fez no mundo. Para os outros, ou seja, o público em geral, muito menos que o que se juntou para os Rage Against the Machine, há palmas entusiasmadíssimas cada vez que ele pega na harmónica e um coro no fim, em “Like a Rolling Stone”.
Para quem viu os Buraka Som Sistema nos primeiros concertos no Clube Mercado em 2006, alguns longe de estarem completamente cheios, ou mesmo a vê-los no último dia do Alive do ano passado, no palco secundário, vê-los a fechar um dia de um festival grande no palco principal é uma experiência indescritível. São das maiores bandas portuguesas de agora, e os níveis de produção cénica aumentaram muito para aquilo que é basicamente dois tipos com computadores e drum pads, um artista de spoken word e dois ou três MCs, dependendo das condições, a dizer palavras de ordem viradas ou para a dança ou para a obscenidade ao microfone. E dança, muita dança, para além de um domínio completo sobre o público (eles dizem para o público se baixar e o público baixa-se, por muito que custe). Ecrãs de televisão com o diamante branco sobre o fundo preto que é o logótipo de Black Diamond, o disco que está aí a chegar, mostram que acho já não estamos no Kansas, Toto.
E não é só de kuduro que eles vivem, há convidados como Deize Tigrona que traz o baile funk, há beats de dubstep, há a remistura de “Dialectos de Ternura” dos Da Weasel com Pac Man a rimar ao vivo e há a maior banda de estádio portuguesa de 2008, dois anos depois daquilo que devia ter sido um fenómeno passageiro. Estes tipos são grandes, muito grandes, capazes de ombrear com qualquer música de rua feita por pessoas que não são bem da rua do resto do mundo (com a adição da bailarina incrivelmente boa que dançava no meio do palco). Um dos principais pressupostos garantidos por um festival que tem Alive como nome, é o de que todos os artistas alinhados em cartaz encontram-se realmente vivos, independentemente das suas idades, estatutos ou naturezas mais ou menos auto-destrutivas. Daí que os demasiado cientes de que a imortalidade lhes é devida possam até já nem manter a preocupação de esforçar os glóbulos vermelhos além do suficiente. O comportamento
low-profile fica bem a quem não tem nada mais a provar a quem seja. A Lenda, contudo, é aquela que deixa história para contar por onde passa, um nome para adoçar o serão em que o patrono decide confiar os seus discos predilectos aos filhos (ou netos), não sem antes relembrar que motivos levaram a tal brilho nos olhos. Assim sendo, quem possui o majestoso
Harvest e viu o seu autor Neil Young em palco pelo menos uma vez, não deve preocupar-se em acumular enxoval ou terrenos no Ribatejo para deixar aos que cá ficam. Um retalho do imenso Neil Young serve bem como herança. Juntar a isso uma camisa de flanela é opcional.
Serve a introdução para explicar que o privilégio de encontrar Neil Young, agora com 62 anos, em palco no terceiro e último dia do festival Optimus Alive ultrapassa em larga escala tudo aquilo que se designaria corriqueiramente por “concerto”. Ao Young God bastou apenas uma guitarra e toda a sabedoria acumulada a décadas de activo (nem sempre qualitativamente estável, diga-se) para, muito naturalmente, desintegrar quaisquer desconfianças de que pelo Passeio Marítimo de Algés passaria uma figura jurássica perfeitamente conformada consigo mesma. Como isso não bastasse, Neil Young trouxe consigo uma banda que, sem o entrosamento calejado de uns Crazy Horse, não deixou de estar à altura da ocasião. Salientam-se, entre os integrantes, Peggy Young (a esposa de Neil Young) e um Ben Keith com classe para queimar no domínio da
steel guitar (verdadeiramente arrepiante em “Old Man”).
Depois, é questionável todo o critério que procure apontar pontos altos a pouco mais de duas horas de uma soberba
Journey Through the Past (e presente também), mas não há como evitar frisar o modo absolutamente magnético como “Cortez, the Killer” – peça-chave de
Zuma - purifica o seu cerne lírico com solos oníricos e a cumplicidade (estranhamente terna) que Neil Young consegue mais uma vez reproduzir ao terminar a absolvição com a repetição
Cortez, Cortez. Assim como não há palavras que descrevam na exactidão o sublime momento solene “Mother Earth (Natural Anthem)”, e como esse vale por mil discursos vazios e datados, ou a força sobrenatural que transportou consigo a versão XXXL de “No Hidden Path”, cujo prolongamento em toada “jam” soprou com tamanha intensidade que conseguiu minimizar o papel do vento forte que se fazia sentir no recinto.
Em pouco tempo, perdoaram-se a “Shakey” pecados (ou discos incompreendidos) como
Trans ou
Landing on Water, e postumamente aceita-se até , com um sorriso pregado nos lábios, que a actuação tenha passado ao lado de um pergaminho sagrado de folk-rock como é
Everybody Knows This is Nowhere, se bem que teria obrigatoriamente de passar ao lado de qualquer coisa. Faltaram, no final, braços para, ao jeito de
Wayne’s World, gritar em euforia religiosa que aqueles ouvidos meramente humanos não eram dignos de escutar Neil Young e o pedaço de eternidade que ali partilhou com uma generosidade que já nem se usa nos dias de hoje.
Miguel Arsénio
O último dia trouxe várias pessoas oriundas de sítios tão diversos quanto aqueles que existem entre Oeiras e Sintra, pessoas que conseguem aprovar artistas que não tomam banho e não têm grande cuidado com a higiene pessoal apenas por terem uma ligação ao mar. Posto isto, Xavier Rudd cantou várias canções sobre a Mãe Terra, dedicou uma delas mesmo à Mãe Terra, pouco antes de, a meio da tarde, ainda com imensa luz do sol, se ligarem os holofotes do palco principal, algo que decerto animou bastante a Mãe Terra. Seguiu-se-lhe Donavon Frankenreiter, amigo de Jack Johnson, cuja música solarenga é bem mais facilmente ignorável e, consequentemente, apreciável que a do ex-surfista havaiano. Pontos para o bigode e para o look de estrela do rock dos anos 70 (bateu Neil Young nesse campo).
Ainda voltou para uma canção no concerto competente de Ben Harper, senhor que domina completamente o público português, depois de ter passado grande parte dos últimos dez anos em palcos nacionais. Pode ser inveja por ele ser casado com Laura Dern, mas um concerto inteiro do homem e da sua mestria nas imensas guitarras que tem (e que, a espaços, podem soar bastante bem, especialmente nas pares em que veicula mais os espíritos de Robert Johnson e Jimi Hendrix do que o de Bob Marley) e dos seus óptimos músicos, não é coisa para se aguentar mais do que uma vez na vida (e esta foi a terceira). Há quem ache que não, felizmente, e continuará a achar, nomeadamente aqueles que fizeram a parte portuguesa da canção que o americano partilha com a brasileira Vanessa da Mata e passou incessantemente em todas as rádios portuguesas.
No outro palco, os Gossip, que, no Super Bock Super Rock do ano passado tinham mostrado exactamente quatro canções (“Standing in the way of Control” e “Listen Up” no campo dos originais, “Careless Whisper”, de George Michael e “Are you that Somebody?”, de Aaliyah, no campo das versões), fizeram um espectáculo incrível que trouxe mais uma ou duas coisas boas. Começou-se com um excerto de “Psycho Killer” dos Talking Heads, passando-se depois para os originais que não se distinguem muito entre si, com linhas de baixo parecidas, mas que puxam muito, especialmente a uma hora tardia (e o concerto veio com um atraso de quase uma hora), pela dança. Beth Ditto é uma figura fascinante e uma grande presença, uma óptima voz, e estava, ela e a sua banda, genuinamente interessada em dar uma festa ali, em partir a loiça toda, em divertir as pessoas. Era, segundo ela, o último dia da digressão e isso pode ser uma das razões. “No sleep ‘til Lisbon”, dizia ela, parafraseando ou os Motörhead (“Hammersmith”) ou os Beastie Boys (“Brooklyn”). As canções, essas, soam mais interessantes do que no ano passado, mesmo que não sejam necessariamente. Acaba tudo com uma apoteótica invasão de palco por parte do público, uma festa e uma óptima maneira de acabar um bom festival, mesmo que Ben Harper tenha vindo depois.