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Liars / Loosers
Santiago Alquimista, Lisboa
09/06/2008


A mentira que os Liars desenvolveram para si próprios faz com que a espinhosa vassoura de alquimias cíclicas e rituais ruidosos montada no alvoroçado They Were Wrong, So We Drowned seja, desde aí, a espetada com aguçada ponta metálica que, sem fim à vista, perfura e adiciona os nacos de carne dos dois discos que se seguiram, Drum’s not Dead e o homónimo Liars. Algumas opiniões incrédulas e pouco favoráveis acerca da pedrada no charco They Were Wrong, So We Drowned estavam de facto enganadas, tal era a dimensão e possibilidades deixadas em aberto pelo seu estupendo big bang , mas os Liars, conforme profetizado no mesmo título, afundaram-se, a partir daí, num fosso estético tão favorável a conjugações variáveis dos mesmos ingredientes (colhidos ao pós-punk) como também difícil de trepar em caso de necessidade de obtenção de ar fresco. É verdade que Drum’s not Dead é cativante no seu conceito de confronto esquizofrénico entre pólos anímicos e galeria de alguns dos melhores temas do trio, assim como Liars não desilude na sinceridade com que aglomera influências afectivas, mas ambos comportam faixas que poderiam facilmente pertencer ao segundo disco herético, fossem sujeitas a uma ou outra transfiguração. Ou seja, os Liars de hoje progridem e renovam-se em passadeira rolante: ocupam-se em atrair os seus singles até à sombra estranha dos lados-b e, inversamente, em arrastar os lados-b até à luz dos temas mais populares e de assimilação mais fácil - estabeleceram-se num limiar que se esgota à medida que se torna previsível esse saltitar interno.

A relativa proximidade entre os últimos três discos dos Liars (o primeiro é já coisa de um passado pouco personalizado) favorece a coesão do concerto que o Santiago Alquimista conheceu, tanto mais que Angus, Aaron e Julian funcionam entre si por telepatia sem mínima interferência, mas a principal diferença entre este e os concertos dos últimos 2/3 anos será mesmo a inclusão de um quarto elemento, que, seja de baixo ou guitarra nas mãos, não encontra forma prática de aumentar a chama que arde no olho central do triângulo, limitando-se a preencher competentemente o caudal de som produzido. Sim, é certo que a presença do front-man Angus Andrew é verticalmente intimidante, no seu gesticular de homem-elástico e no uivo que concentra todos os uivos no largar do foguete aborígene “Let’s Not Wrestle Mt. Heart Attack”, do mesmo modo que é implacável e pleno o efeito da percussão sincronizada que transforma “A Visit from Drum” e “We Fenced Other Gardens with the Bones of our Own” em momentos colossalmente dramáticos, mas, à excepção da acentuação mais lúdica e descomprometimento indie de novidades como o acelerado “Plaster Casts of Everything” e “Houseclouds” (com cheirinho a Gorillaz), será que esta noite diferiu assim tanto das outras? Só a curta duração do concerto poderá ter impedido algumas incertezas de se transformarem em evidências pouco entusiasmantes. A tradição mantida faz com que os Liars sejam cada vez mais o feiticeiro vitimado pelo seu próprio feitiço.

Por sua vez, os Loosers – que, no seu início, eram várias vezes comparados aos Liars de primeira temporada – quebram o feitiço da tradição a cada nova prestação e continuam a ser um dos mais imprevisíveis colectivos portugueses no activo. Nessa noite, optaram pela via da jam de rock arrastado e guitarras ao alto (uma delas tocadas por um quarto membro), que acabou por desaguar num apoteótico gamelan alucinado.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
09/06/2008