O acontecimento havia já sido amplamente noticiado: em Julho de 2007, uma parte significante da cidade de Barcelona ficou sem electricidade devido a uma falha grave. Assim permaneceu durante três dias consecutivos. Por acidente ou falta de opção no que respeita a actividade para ocupar o serão, o efeito do “apagão” fez-se sentir no
baby boom que, sensivelmente nove meses depois, trouxe até às maternidades da Catalunha um fluxo anormal de novos recém-nascidos. Os contornos escurecidos do fenómeno levaram a que os serviços noticiosos apelidassem esses filhos dos dias tardios de Abril de 2008 como a
Geração Off. Talvez cientes de que todos os estímulos proporcionais à criação constituem um bem altamente exportável (e necessário por cá), os organizadores do Festival Offf, que, desde 2001, decorria em Barcelona como grande montra reservada à apresentação de criativos de topo envolvidos em meios pós-digitais (leia-se designers altamente imaginativos com um
laptop nas mãos), optaram este ano por mudar o certame para a Fábrica de Lisboa, bem perto da zona do Calvário e de Alcântara. Quando, num mesmo lugar e durante três dias, discursam alguns dos criativos visuais (e não só) mais determinantes na publicidade dos dias de hoje, torna-se fácil adivinhar que entre os presentes esteja uma enorme quantidade de formandos prestes a figurar na geração de designers do amanhã.
Em que plano se aloja então a música - a Meca que serve de norte ao Bodyspace – num festival reservado à cultura pós-digital? Numa programação maioritariamente concebida com o intuito de trazer até ao Offf alguns dos mais cruciais criadores dedicados ao teste e transcendência dos limites da electrónica. Na verdade, sente-se no Offf uma saudável camaradagem entre a música e o design: seja na presença tatuada do guru visual Joshua Davis, que gesticula riffs numa
air guitar antes de acrescentar um pouco mais de cor ao mosaico colectivo que ofereceu às pinceladas de todos os presentes, ou na confidência adiantada pelo próprio que, referindo-se à ausência (à partida nada lógica) que o afastou do álbum gráfico dos Melvins
Neither Here Nor There, alegava que a sua amizade com Buzz Osbourne se limitava ao tiro ao alvo que praticavam com caçadeiras a cada vez que se encontravam em Los Angeles. Sem se deixar intimidar por isso, o Bodyspace procedeu à medição anotada da temperatura verificada na sala Loopita, espaço reservado à música, e o resultado é apresentado já de seguida.
Dia 8
Federico Monti
A bola começou a rolar no espaço Loopita, que logo revelou a boa saúde gozada actualmente pelo glitch e outros sintomas microscópicos semelhantes na cidade de Barcelona (cidade onde Murcof e Prefuse 73 criaram ultimamente óptimos discos). O representante escolhido dá pelo nome de Federico Monti e foi pelo menos estimulante o “aquecimento” que proporcionou através de um glitch movediço bem preparado em casa, e visualmente acompanhado por uma série de figuras geométricas em movimento e jogos de contraste entre cores.
Sebastien Roux
Sebastien Roux apresentou-se num registo muito próximo do assumido no seu mais recente disco
Revers Ouest *. A principal diferença residiu no complemento visual, projectado no ecrã da sala, que deambulou pela nervosa estética urbana de David Fincher (
Seven,
Panic Room) com a variante dos personagens falarem em francês. O ponto alto foi a perturbante repetição em
slow-motion de um chuveiro de água a atingir uma multidão.
Rafael Toral
A regra pós-digital e o domínio dos
laptops, enquanto instrumento preferencial dos intervenientes, conhece uma empolgante quebra quando chegou a altura de Rafael Toral pisar o palco da Loopita para conduzir, em toda a sua glória analógica, um
patch de sintetizador modular que tem por interface uma antena de theremin (activada pela mão esquerda do autor de
Space) e um
ribbon controller (espécie de fita magnética em que os dedos deslizam). À medida que Toral vai encadeando uma extensa sequência de sons borbulhantes e vacilantes, a interacção eminentemente física entre o executante e a máquina dificultam o estabelecimento de um limiar que permita saber exactamente onde começa um e termina o outro.
Byetone
Sobre o seu nome, Olaf Bender (Byetone quando actua a solo) conta com o peso de ser um dos co-fundadores e principais estetas da
label Rastermusic, que, ao fundir-se com a ramificação Noton, deu lugar à Raster-Noton, sinónimo de garantia em termos de electrónica minimalista e experiências cerebrais auscultadas. A defesa da reputação que mantém a Raster-Noton é incumbida a um Olaf Bender que, apesar dos 40 anos acumulados, aparenta uma jovialidade em toda a escala aproveitada na simulação sísmica que proporciona aos presentes no epicentro Loopita. Se o fabuloso single “Plastic Star” era já de si avassalador no seu rendimento caseiro, ascendeu ao estatuto de milagre sensorial na sua versão “extended”, intensificada por uma contagem crescente contabilizada pelos números no ecrã a anunciar uma bomba-relógio invertida. A afluência e índices de interesse registou um aumento no segundo dia de conferências. Na apresentação de Hi-Res!, dupla de designers representada no festival por Florian Schmitt, ficamos a saber que determinadas estruturas do site oficial de Beck tiveram por base “esculturas feitas com equipamento musical velho” (cassetes e tudo mais). O mesmo Florian Schmitt confessou que obtinha também inspiração ao conceito
Secret Wall Tattoos celebrizado por Josh Homme dos Queens of the Stone Age e que consiste essencialmente na pintura de porções de paredes de motéis que, na altura do
check-out, permanecem camufladas pelos mesmos quadros ou espelhos removidos para o efeito.
Jorge Haro
Da Argentina, com caule nas lides da música experimental e criação audiovisual, Jorge Haro apresentou, em modo de ficção-cientifica sincronizada, cenários possíveis para a aterragem de OVNIS, preenchendo o ecrã com depósitos de água (será?) e campos de feno, enquanto as colunas do espaço soltavam um dilúvio de sons trepidantes capazes de ameaçar a resistência dos tímpanos.
Sawako
O prémio de “Mais adorável presença feminina no Offf” pertence justamente à japonesa Sawako. Bem o merece pela forma como assentava o cabelo diante do espelho no espaço comum entre os lavabos masculino e feminino, pelo à vontade de
girl next door com que se atirava a uma garrafa de Super Bock de 33cl, por ser das poucas
headbangers presentes na prestação de Byetone e principalmente pela decisiva saia que trouxe vestida no dia da sua actuação. De pernas cruzadas e diante de um
laptop, Sawako faz desfilar uma estética que funde a discrição e detalhe do selo 12K (amplamente representado nessa noite) e a forma caleidoscópica e fragrância nostálgica da escola japonesa Noble (mais associada à electro-acústica). A certa altura, os coloridos escolhidos por Sawako aproximam-se dos normalmente explorados por Takagi Masakatsu (nome grande do Offf do ano passado em Barcelona) e o público comunga do sentimento nostálgico agridoce que aos poucos se apoderou da Loopita.
Antti Rannisto
De seguida, a distribuição de espaço ajustou-se à densa infiltração dos drones duplos ensaiados por Antti Rannisto, par de mãos finlandesas que durante sensivelmente meia-hora embalou frentes várias de um minimalismo ostensivamente frio. Enquanto isso, o pixel, matéria-prima do Offf como alguém acertadamente apontou, multiplicava-se a uma velocidade infecciosa no ecrã que começou negro e terminou praticamente repleto de luz.
Taylor Deupree / Kenneth Kirschner
Dirigindo-se a Taylor Deupree e Kenneth Kirschner, que assistiam às actuações sentados junto à parede de fundo, Rui, um dos membros fundadores do Festival Offf, anunciava que era a hora dos primeiros subirem ao palco dizendo:
Now it’s time for the nerdy boys.. Os visados reagiram com sorrisos, até porque
nerdy pode nem ser um termo exactamente pejorativo – no caso de Deupree e Kirschner, é até lisonjeador e serve para resumir toda a atenção obsessiva e minuciosa que os estetas dedicam aos conteúdos sonoros trabalhados. O conceito apresentado nessa noite, denominado de
pós-piano, é até familiar a ambos: Taylor Deupree tem refinado a sua abordagem digital ao instrumento numa série de lançamentos e projectos, Kenneth Kirschner dedica-se várias vezes ao piano, sendo, além disso, apologista de que outros artistas o
samplem ou misturem. De certo modo, as dinâmicas são semelhantes às mantidas por Alva Noto e Ryuichi Sakamoto no projecto Insen – filtram-se os sons de um piano tratado através de um
laptop - clínico na sua intervenção – e, com isso, sucedem-se novas possibilidades habitualmente resultantes em acrescentos à parcela da palete reservada aos sons mais elegantes e inexplicavelmente propícios a um saudosismo dedicado a eventos ainda por acontecer. A hora de almoço do último dia de festival é marcada por um episódio surreal e provavelmente inédito para grande parte dos presentes: o espaço reservado às conferências, que alberga pelo menos um milhar de pessoas, recebe a Agence7Seven para sessão de esclarecimento e exibição não-censurada de uma campanha publicitária dedicada à marca de roupa Shai que tinha por “anzol” o download gratuito de uma série de vídeos pornográficos iguais a tantos outros. Infelizmente, a pouca subtileza do momento resultou num redondo
turn offf colectivo. A actuação dos intérpretes nem sequer era particularmente convincente.
Jorge Castro
O currículo e características de Jorge Castro aproximam-no do seu homónimo que havia actuado no dia anterior. Contudo, Castro prefere um plano mais térreo: arrasta os ouvidos presentes por uma árida paisagem que vai sendo pontuada por aquilo que parecem ser os sons da fricção e peso exercido pelo calçado de quem percorre um cenário típico (e rochoso) de um filme da saga
Mad Max.
Feltro
Curadores deste país estejam atentos: André Gonçalves (dantes Ok.Suitcase., agora Feltro) pode até não estar disponível para casamentos e baptizados, mas, ao que parece, oferece todo o tipo de imaginativas soluções a instalações audiovisuais para as quais possa ser convidado. A surpreendente simplicidade da sua actuação fez com que fosse a mais memorável que conheceu a sala Loopita naqueles três dias: primeiro, André deixa a rodar o que podia bem ser um diário sonoro de um quarto em Lisboa e aproveita o automatismo disso para vir cumprimentar com simpatia alguns amigos. Depois fez-se magia: o tal diário de sons (que admitia a intrusão de algumas ressonâncias e outras linhas contínuas) foi sendo combinado com a “pilotagem” de um ou dois balões suspensos no ar controlados pelo próprio através de uma ventoinha. Para quem tinha saudades do esvoaçante saco plástico de
Beleza Americana ou da bola Wilson cujo desempenho transcende a interpretação de Tom Hanks em
O Náufrago, o momento Felto foi a todos os níveis brilhante.
Steinbrüchel
Em relação a todas as performances que a sala tinha conhecido até então, a de Steinbrüchel distinguiu-se por encontrar o suíço sentado entre o público (e não em palco) acompanhado apenas por um
laptop (com o monitor ao acesso dos olhares mais indiscretos), um Doepfer Pocket Dial (aparelho analógico cheio de botões rotativos) e aquilo que aparentava ser um disco externo (talvez
quitado). Trabalhando ainda o conceito iniciado com o recente
Basis, Steinbrüchel procedeu a uma dosagem morosamente subtil e altamente invocativa de componentes acústicas em estado bruto, tal como colhidas aos arquivos dos discos
Happiness Will Befall de Lawrence English (espiritualmente presente na recta final do
set) e
Theory of Machines de Ben Frost.
@c + Lia
A presença conjunta de @c (unidade portuense formada por Miguel Carvalhais e Pedro Tudela) e Lia (pioneira de relevo na arte de software e Internet tão celebrada no Offf) forma aquilo que pode ser uma espécie de
dream team no plano nacional (aliado ao internacional) em termos de espectáculo (sim, espectáculo) audiovisual de índole pós-digital permanentemente sujeito ao risco que isso implica. A informal cerimónia de encerramento da sala Loopita (sucedida pelo
show-offf digital e “pirotécnico” de seguida ocorrido no mais amplo espaço de conferências) equivaleu a um
tour de force radical em que os
laptops artilhados da dupla @c produziram toda a radio@tividade e aparato-adubo necessário ao florescer desenfreado das meias-luas com que Lia ia inundado o mosaico gráfico, variando as movimentações entre técnicas de contraste, colisões várias, manutenção e destruição de padrões. Foi como se os @c e Lia se tivessem chicoteado e abusado mutuamente no jardim anormalmente fertilizado de Dr. Mabuse. Um final monumental.