O cantor surge ao fundo do palco, sentado numa cadeira vermelha. O espectáculo abre com um dos mais belos temas do novo disco, “Sei de um rio”. Camané faz uma interpretação elegantíssima, combinando os momentos de necessária contenção com uma entrega precisa, numa perfeição só sua. A interpretação é óptima, mas fica a ideia de que o trunfo terá sido gasto demasiado cedo, quando estávamos ainda no período de aquecimento. Camané levanta-se, o espectáculo prossegue e centra-se nos temas do novo disco, e pelo meio vão sendo intercalados alguns “clássicos”.
Na guitarra portuguesa, José Manuel Neto; na guitarra clássica (ou viola, como “eles” lhe chamam), Carlos Manuel Proença; no contrabaixo, Paulo Paz – trio eficientíssimo. E lá pelo meio surge o convidado Carlos Bica, que leva o espectáculo a fugir à produção conservadora de José Mário Branco. Camané canta em dueto com Bica e ficamos com vontade de ouvir Camané cantar um fado menos “fechado”. Depressa tomamos consciência que essa curiosidade é passageira, apenas. Do que nós gostamos mesmo em Camané é dessa permanente elegância, ancorada numa produção sóbria e no canto feito de subtilezas.
Camané não facilita, não pega em temas populares, limita-se ao seu repertório original e vai assim desenvolvendo uma carreira ímpar. E mesmo partido desse princípio, os êxitos não faltam: “Mais um Fado no Fado” ou “Marcha do Bairro Alto” já são clássicos do próprio Camané e do fado contemporâneo. Do meio da plateia, Carlos do Carmo assiste à consagração do seu natural sucessor. O mais importante símbolo vivo do fado aplaude e esse aplauso simboliza a passagem de testemunho ao mais notável representante da contemporaneidade do fado. Sentado ao lado de Carlos do Carmo, Sérgio Godinho assiste à interpretação de “Sonhar Durante o Fado”, um original da sua pena (e um dos menos convencionais do programa).
No final, os encores sucedem-se, o público não deixa Camané descansar. Não falhou ainda o clássico “Ela tinha uma amiga” (ou o elogio da segunda escolha). A repescagem de “Sei de um rio” foi, desta vez, arrepiante. E para despedida definitiva Camané ofereceu uma pungente versão de “Complicadíssima Teia”, a cappella. Não houve “show off”, não houve exibicionismos. O cantor foi fiel a si próprio e isso basta para o público fazer o reconhecimento: Camané chegou ao cume da sua arte.