bodyspace.net


Lisa Germano
Theatro Circo, Braga
29/11/2006


Apetece dizer que a voz de Lisa Germano tem de ser uma das melhores da actualidade (e desde que editou o seu primeiro disco a solo, On the Way Down From the Moon Palace, em 1991), assim directamente e sem papas na língua. Há algo na forma sussurrada como diz as palavras que faz com que pareça ser importada directamente dos deuses. Ei-la no recentemente inaugurado Theatro Circo em duas noites e pelo preço módico (quase gratuito) de cinco euros. Será de toda a justiça tecer alguns comentários sobre o Theatro Circo só para dizer que é deslumbrante – o hall de entrada e os seus corredores (os dourados e os vermelhos) fazem prever algo de maravilhosamente sumptuoso na sala principal do edifício. Pela atitude inicial parece que Braga se juntará a Lisboa e ao Porto, se não em quantidade, pelo menos em qualidade.

Mas a Lisa Germano não calhou a oportunidade de actuar na sala principal, mas sim numa sala subterrânea de tamanho inferior à principal, que inaugurou musicalmente falando. Em palco há um piano e uma guitarra eléctrica mas quando Lisa Germano entra em palco, elegante mas não demasiado vistosa, dirige-se decidida para o teclado. A entrada do piano deixou marca mas a chegada da sua voz terna fez mossa (ou terá sido a mistura dos dois?). A partir daí não havia nada a fazer, não havia forma de dar volta atrás. Nesse momento entramos todos no peculiar e doce (às vezes doce-alegre, às vezes triste-doce) mundo de Lisa Germano.

Na segunda canção já estávamos no melancólico e reservado Lullaby for Liquid Pig, com “Pearls”: “Raise your mask / Look at you reflect / Hate will grow / Into blossoms of no / Take you lower than low / Hate will grow with your alcohol glow / You'll get used to the show / Hate will grow / Into someone you know / It feels good to be home”. Mas este novo disco, In The Maybe World, que se relaciona profundamente com a morte (na opinião de Lisa Germano é tudo sobre como aprender a ver a morte - e a vida - de outra forma), é de certa forma a continuidade das ambiências delicadas de Lullaby for Liquid Pig, dois discos que são como uma garrafa com uma mensagem à deriva no meio do oceano. São discos entre o quente e o gélido, entre o positivismo e o negativismo.

Lisa Germano acabou por correr In The Maybe World quase de uma ponta a outra. Apresentou “Except for the Ghosts”, canção dedicada (com justiça) a Jeff Buckley, anunciou e executou duas canções dedicadas a gatos (na sequência da sua relação quase obsessiva com os felinos), uma delas “In the Maybe World”, canção escrita no decorrer da estranheza que lhe provocava o hábito continuo que os seus gatos tinham de lhe trazerem pássaros mortos quando ela estava a tocar piano (história da qual retirou a moral de aproveitar mais a vida); passou na por “Red Thread” à guitarra, uma das mais belas canções de In The Maybe World, sobre uma conversa de telefone, de um tipo de relação “Go to hell / Fuck You”, com final curioso: “I Love you / I love you too”. Lisa Germano faz-se de doces contradições.

As canções de Lisa Germano dividiram-se mais ou menos entre a guitarra e o piano (com destaque numérico e qualitativo para o último). Na guitarra, um dos melhores temas apresentados foi “Paper Doll”, outro regresso saudável a Lullaby for Liquid Pig: “In my mind / It was oh so fine / Happy now / Happy gone / I am often wrong / Put me on / Scissor me / Then you leave me be / Cut me out / Knead me too”. Mas a noite era mesmo do último disco. In The Maybe World não é um disco fácil – ou pelo menos não tão fácil como Lullaby for Liquid Pig. É um disco, passando o lugar comum, que cresce com o tempo. O mesmo acontece com uma das suas canções, “In the Land of Fairies”, estranhamento fantasioso que rapidamente se transforma em encantamento. “Golden Cities” e “Into Oblivion” que em disco surgem juntas, tiveram o mesmo destino ao vivo.

Para o encore Lisa Germano sobe de novo ao palco e pergunta ao público se têm canções que queiram ouvir. Alguém diz “Cry Wolf” e a resposta foi negativa; depois alguém diz “From a Shell” (abençoada a voz que a pediu), pedido aceite e cumprido de forma superior. Antes de sair do palco regressou a 1993 e a Happiness para cantar o precisamente o último tema do disco, “The Darkest Night Of All”: “Goodnight / How can you sleep? / How can you sleep through this? / What are your thoughts? / As you turn to dream? / I wouldn't know / I never look / These things are hard / These things can hurt”.

É verdade que ao vivo as canções de Lisa Germano existem como uma reprodução muito fiel das gravações dos discos. Isso a juntar a uma escolha de alinhamento feliz e a uma simpatia calorosa (a chegar ao humor por vezes), Lisa Germano assinou um excelente concerto na primeira de duas noites em território bracarense. As suas canções ficaram irremediavelmente gravadas no histórico Theatro Circo.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
29/11/2006