Qualquer tentativa de explicação, contextualização ou descrição da noite de 18 de Março no bar O Meu Mercedes é Maior Que o Teu que não contenha as palavras “bizarro”, “estranho” ou “surpreendente” dificilmente constituirá um relato próximo da realidade. O motivo que originou tal noite era conhecido por muitos: o lançamento do fanzine O Mouco na sua versão on-line. A celebrar também, a reunião de três “projectos” oriundos de três locais distintos: França, Canadá e Portugal. O primeiro a subir ao palco foi Francisco Silva - mais conhecido por Old Jerusalem - para, numa curta actuação de apenas dois temas, apresentar uma preview do seu próximo disco - intitulado Twice the Humbling Sun - que será editado no próximo dia 1 de Abril. Francisco Silva é, cada vez mais, um músico seguro em palco, capaz até de uma graçola ou duas. Começou por apresentar um tema onde a guitarra acústica foi preenchendo os espaços vazios enquanto Francisco fazia desenrolar mais uma história que lhe incumbiram de contar. Ele próprio tinha avisado que a canção poderia ainda não estar ainda finalizada e agradeceu sugestões para as últimas linhas de uma letra que – se viria a ouvir depois – terminava de forma surpreendente com termos que pouco ou nada devem aos tons outonais: “tits” e “dick”. Almost porn-songwriting, anyone? Surpreendente. A próxima e última escolha no alinhamento derivou, como o próprio Francisco Silva confessou, de uma escolha legítima: escrever uma canção que dá nome a este novo disco - Twice the Humbling Sun - e informada e democraticamente não colocá-la no disco. A ver pelo que este novo disco demonstra, o primeiro verdadeiro concerto de apresentação de Twice the Humbling Sun - que acontecerá no mesmo local no próximo dia 1 de Abril – será o materializar da nova direcção que Old Jerusalem parece ter agarrado: canções mais corpulentas, mais preenchidas num registo que consegue ultrapassar categoricamente a temível barreira do segundo disco.
Julie Doiron © Augusto Lima |
Mal terminou a actuação de Old Jerusalem, Julie Doiron – a menina que ainda há poucos anos tocava baixo nos Eric’s Trip e que agora, senhora, embarca há já longo tempo numa prolífica carreira a solo – entrou em cena para, como ela própria anunciou, tentar um dueto inesperado: Old Jerusalem na guitarra acústica, Julie Doiron na eléctrica. Francisco Silva anuiu e reforçou: “Tentar é a palavra certa”. E tentaram – em dois temas. A primeira vez que se escutou a voz da canadiana foi na ternurenta “Snow Falls in November”, berço de uma quase apatia-saudável - “Let the babies sleep, let the dogs rest. - e da perfeita visão de um Novembro pachorrento colorido de neve. Continuou-se a percorrer Goodnight Nobody, o último disco de Julie Doiron editado pela Jagjaguwar, com a ultra-confessional “Last Night”, dedicada aos seus filhos e a todos os artistas que deixam os seus filhos para partirem em digressão pelo mundo. Aproveitando a direcção tomada, Julie, sempre tímida e reservada, havia ainda de pegar em “No Money Makers”, outro tema retirado de “Goodnight Nobody”, apresentar uma canção em francês – Julie Doiron tem um disco todo ele cantado em francês intitulado Desormais editado em 2001 pela mesma Jagjaguwar – e ainda recuperou um tema de “um EP que foi lançado em 1999”.
Aproveitou uma das pausas para contar como tinha sido complicado encontrar o local do espectáculo, pois tinha atravessado a Ponte D. Luis - do Porto para Gaia, de Gaia para o Porto – uma série de intermináveis vezes. Confessou ainda não saber muito bem o que estava a fazer – tal a multiplicidade de participações entre os três projectos na mesma noite – e anunciou até estar aberta a pedidos de canções. Alguém fez a sugestão: “Total Eclipse of the Heart”. Dito, feito. Passados poucos segundos já se ouvia uma tímida tentativa de cover a cappella do clássico de Bonnie Tyler.
Old Jerusalem e Julie Doiron © Augusto Lima |
A actuação de Julie Doiron, não muito longa, terminaria pouco tempo depois para que um projecto ainda quase desconhecido tomasse conta das operações – e tendo em conta a bateria, a quantidade de teclados, samplers, máquinas e cabos que figuravam no palco (que tinha sido alvo de rasgados elogios por Julie Doiron momentos antes) faziam prever algo bastante diferente daquilo que se tinha ouvido até à altura. No fundo, aquilo que se pode ouvir tanto em Form Of, como no EP Play The Immutable Truth , os dois trabalhos mais sonantes dos Berg Sans Nipple, uma dupla franco-americana formada por Lori Sean Berg e Shane Aspegren: uma mescla de melodias possuidoras de um forte sentido pop com muita percussão. E é a percussão que mais se fez sentir na maior parte dos temas apresentados. E os teclados (por vezes a fazer lembrar Four Tet). Mas acima de tudo a percussão; forte, cada vez forte, com tons levemente jazz, espaçada, complementar, forte, sempre presente. De braço dado com os teclados, na contribuição para a fortificação do sentido melodioso da dupla, xilofones. Para ajudar a desconstruir, samples e o arremesso de melodias e sequências em loop. “A New Soul”, tema incluído em Form Of, mostrou-se plena de pequenos detalhes rítmicos, possuidora de uma parafernália de sons que é característica na música destes Berg Sans Nipple. “An Eternity In Purgatory”, um longo tema retirado do EP Play The Immutable Truth , acabou por ser um dos melhores momentos da noite e mostrar a génese do projecto: percussão poderosa, quebras rítmicas de tirar o fôlego, teclados cálidos e a melodia escondida ao ponto de querer ser encontrada – o mesmo acontece com os trabalhos dos Berg Sans Nipple. Julie Doiron voltou a subir ao palco para acompanhar a dupla parisiense e a noite continuou assim, por mais três temas da sua autoria, num clima de quase improviso, de quase jam multi-estilística. Para a alegria dos que pediam insistentemente que a noite continuasse por apenas só mais uma canção.
Berg Sans Nipple © Augusto Lima |