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Festival Pura Vida
Rua Fuencarral, Madrid
23/09/2006


No dia em que se celebrava a Noche en Blanco em Madrid, iniciativa cultural que consiste na abertura de todos os espaços culturais da cidade – Reina Sofia, Prado, Thyssen-Bornemisza, entre muitos muitos outros - e de algumas iniciativas de rua (Riga foi a primeira a celebrar a Baltá Nakts, depois foi Roma duas Notte Bianche; seguem-se Bruxelas e Paris com respectivos festejos da Nuit Blanche), a calle Fuencarral, verdadeiro paraíso na capital espanhola para jovens e freaks comprarem a roupa e mostrarem-na, acolhia uma das mais interessantes propostas musicais do programa: o Festival Pura Vida, na sua segunda edição. Rua cortada, inicio das actividades às 4 da tarde, evento gratuito. Escusado será dizer que com o avançar da hora foi cada vez maior o número de pessoas a dirigirem-se para a rua Fuencarral; gente bonita, com desejo de vivência urbana (seja lá o que isso for), gente freak.

O cartaz do certame misturava nomes estrangeiros com nomes espanhóis, escolhidos a dedo para o tipo de ‘habitantes’ que frequentam a zona: Indie rock da moda, e electrónica da moda (Vive la Fête), e DJs. A juntar a isto, vídeo arte, bicicletas, entre outras coisas. Curiosamente o tempo não quis ajudar e os céus de Madrid, pela sua cor escura, ameaçavam estragar a festa com chuva (se chegou a cair em quantidade leve durante algum tempo).

Os primeiros a subir ao palco foram os jovens madrilenos Seine, inspirados tanto pelos ‘clássicos’ (The Clash, Sex Pistols) como pelos novatos (Franz Ferdinand). Diz-se também que o jazz e o soul os influenciaram bastante mas isso não se nota muito. Em breve rumam a Cáceres aos Prémios de Pop Espanhol onde lhes será entregue o prémio de melhor grupo espanhol, provavelmente à custa de The Voice of the Youth, editado pela Wild Thing Records em 2005. Apesar de todas estas coisas bonitas, os Seine, apesar de um ou outro tema para bater o pé, não despertam especial interesse; não são especialmente originais, não são especialmente cativantes. A música dos Seine entretém (alguns truques e jogos nas guitarras ajudam a passar o tempo) mas não passa daí. E a chuva, embora pouca, não ajuda muito.

No intervalo, depois do concerto dos Seine, algo que não ajudava em nada a aguentar a chuva miudinha: o punk borbulhento e adolescente dos Offspring. Algo que não lembra a ninguém, especialmente tendo em conta o ambiente envolvente. Incompreensível. Algo que caía melhor naquele cenário era o “tropical death psychedelic garage disco” (nas palavras da editora Tigersushi) dos chilenos Pánico, senhores autores do soberbo Subliminal Kill (2005). E assim foi. Entretanto, a quantidade de pessoas na calle Fuencarral continuava a aumentar apesar dos chuviscos. O álcool e outras substâncias abundavam, os espanhóis são conhecidos pelo botellón, ‘festival’ alcoólico numa qualquer rua de uma qualquer cidade (podem ser 3 pessoas ou milhares, andam pela rua fora com garrafas de bebidas alcoólicas em sacas e copos na mão). E assim se aguentava a chuvinha e se preparava a entrada dos Pánico.

Eduardo Pistolas (voz e guitarra), Carolina Tres Estrellas (baixo e voz, alvo de muitas atenções pela forma como se apresentou), Memoria Radial (guitarra), Seba (bateria) y DJ Squat (nos pratos) não são a típica banda disco, nem são a típica banda rock. Apareceram pela primeira vez nos anos 90 em Santiago (cidade onde se estrearam) e editaram vários discos, mas só com Subliminal Kill alcançaram fama digna pela Europa. Hoje em dia parecem por vezes os !!! ou os Rapture, cantam essencialmente em castelhano e fazem grande festa. Têm sangue latino a correr-lhes nas veias.

Como não poderia deixar de ser, o hit "Transpíralo" (de Subliminal Kill) foi alvo de especial atenção, e com todas as razões para isso. Punk-funk de cowbell na mão (que lhe dá aquele toque divino de transcendência), provocador, com atitude filha da puta. Tudo rodeado por ruídos estranhos, interferências, algo que confere às canções dos Pánico uma resistência ao tempo e ao ‘enjoamento’ precoce. “Iguana” e “Lupita” do mesmo Subliminal Kill marcaram também presença com a mesma atitude e irreverência. A relativamente pouca ‘aderência’ do público ao que se estava a passar em palco só se pode explicar pela chuva e por algumas deficiências do som (e, OK, por um ou outro tema menos interessante). Os Pánico não tiveram as coisas fáceis e por isso não venceram como teria acontecido em situações normais. Mas havia uma oportunidade de redenção: logo ali ao lado, no Club Nasti, passado algumas horas do concerto no Festival Pura Vida.

E de repente o sol. Os mais distraídos podiam achar que era coincidência mas não: os Hidden Cameras e a sua música poptimista estavam mesmo ali a chegar. Com Awoo recentemente editado, os canadianos Hidden Cameras de Joel Gibb preparavam-se para vir a Madrid apresentar algumas das canções mais viciantes que já compuseram e, se possível, arrastar mais uns fiéis para a causa. Vinham com full band, (inclusive dois violinos e um violoncelo, elementos essenciais para transpor o indie pop sinfónico de Awoo para os concertos), se assim se pode dizer, vinham apresentar algumas das melhores canções pop escritas/publicadas/interpretadas em 2006. Sim, porque Awoo é sério candidato aos topes de final do ano – que, parecendo que não, estão já aí ao virar da esquina.

A primeira parte de Awoo foi apresentada na totalidade. A aceleradamente doce “Death a Tune” no final, “Awoo”, o tema que dá nome ao disco, a essencialmente acústica “She’s Gone” e as cordas desdobráveis, a delirante “Lollipop”, canção sobre comer demasiados doces e ficar louco que lembra em tudo os R.E.M. de Michael Stipe, a mais despida “Fee Fie” e a breve e esquizofrénica “Learning The Lie”, a fazer lembrar David Byrne na voz. Awoo acaba também por fazer lembrar por vezes os Beach Boys nos arranjos, no sentido pop.

Porque não regressar a 2003 e a The Smell of Our Own para pegar em “Ban Marriage”, uma sarcástica canção sobre as peripécias do casamento? Eles que tantas vezes falam da sexualidade, da politica, da politica de sexualidade e da sexualidade da politica. Eles que foram os primeiros canadianos a fazer parte da Rough Trade nos 25 anos da história da editora. Eles já que levam três discos. Eles que por vezes lembram os Magnetic Fields e os Belle & Sebastian (ou até os Flaming Lips). Eles que, há quem diga, fazem “gay church folk music”. Eles que fazem grandes canções. Toda a pop devia ser assim.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
23/09/2006