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© Teresa Ribeiro |
Por mera necessidade de documentar prestações, colaborações e trabalhos de carácter único ou muito raro, a label australiana Room 40 continua a manter uma indecente regularidade no que respeita ao lançamento de preciosíssimas edições limitadas em formato de três polegadas ou através de compilações temáticas. As primeiras são facilmente identificáveis pelo requintado design que distribui, em partes exactas, a porção de disco reservada ao acrílico e ao plástico respectivamente. O Bodyspace aborda três desses exemplares que, musicalmente, se situam algures entre o sublime e o fascinante reino do ininteligível.
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Lawrence English / Philip Samartzis One Plus One 2006 Room 40 |
One Plus One é tudo o que não se esperaria da primeira colaboração de estúdio a interligar triangularmente Lawrence English e Philip Samartzis – duas das mais interessantes figuras do experimentalismo Australiano – e a tendência para as menos ortodoxas e invulgares manipulações arrancadas a algumas mesas de gira-discos. Foi necessária uma primeira actuação conjunta (em Brisbane no ano de 2002) para que surtisse em ambos uma reacção química que permanece agora consolidada em One Plus One - lançamento a que se sente de imediato eficiência e força nas armadilhas sensoriais que articula a partir de turntables cujas funcionalidades, aqui, transpõem em muito o sampling e circularidade em loop. Transpõem, logo em “Faster than Cold”, a necessidade de perder tempo com qualquer ambientação climatérica – detonando com perigosa imprevisibilidade um marasmo de ruídos sugestivamente líquidos e impelindo à vertigem sobre esses com tons contínuos em movimento pendular. Nem que seja para contrariar a seriedade habitualmente associada a este tipo de discos, a invulgar “Gut Bucket Blues” exibe ásperas e trepidantes arestas que vem limar uma espécie de sirene de dispersão – os blues emergem finalmente entre os detritos que capta a agulha e o exercício acaba por se revelar quase inédito no caso de Samartzis, como de English. Dupla que muito bem podia aventurar-se em longa duração a partir daqui.
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Richard Chartier Current
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Antes de sequer revelar sons humanamente audíveis, Current toma o tempo de que necessitariam os Anal Cunt para formar um EP de porte épico – ou seja, abre com minuto e meio de near silence que só muito gradualmente vai conhecendo a aurora de minimalismos dispostos como partículas e outros fluxos de som ininterrupto, que mais não são do que marcas de autor associáveis ao trabalho de um Richard Chartier predominantemente provocador e incorruptível na recusa de facilitar os seus mecanismos (perseverança essa que lhe terá valido a comunhão criativa com William Basinski e Taylor Deupree). A verdade é que o vácuo que se escuta aos mencionados noventa segundos não existirá, contudo, em vão. A partir de uma segunda escuta torna-se legitimo entender esse período inicial como o tempo mínimo de que necessita o corpo humano na adaptação à pressão atmosférica – até porque, segundo consta, “Current” debruça-se tematicamente sobre a abstracção que desenvolve um passageiro de avião em relação à noção de espaço e tempo e às correntes de ar que lhe são superiores e às correntes oceânicas inferiores. De certo modo, “Current” evolui como um delicado exercício zen que, por via da progressividade compassada dos elementos etéreos que incorpora, garante a absorção compacta dos conceitos aeronáuticos a que se compromete. Mesmo que a sua discrição obrigue a uma auscultação atenta em isolamento absoluto.
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V/A Incidental Amplifications 2006 Room 40 |
A presente interrogação é recorrente: manterá a gerência do Metro de Lisboa a menor noção da crucialidade e impacto nas vidas dos utentes que pode exercer o conteúdo que emite o seu sistema sonoro? Do risco social que representa cultivar a passividade com a transmissão descontrolada de doses massivas de easy-listening genérico sem elementos vocais? Dos colapsos nervosos que pode despoletar um êxito pop mais saturado entre potenciais bombas humanas em ponto de Michael Douglas como o conhecemos a Um dia de Raiva? Visionariamente ciente desse poder impalpável, George Squier criou, em 1922, as fundações da Muzak que – de um modo muito simplista – pode ser descrita como música de cariz ambíguo adequada ao preenchimento da aura de pessoas inseridas em contextos comerciais ou de produtividade profissional. Em Incidental Amplifications, alinham-se catorze espíritos criativos em demonstrações de rebeldia face a esse domínio global alcançado pelo inventor norte-americano. O fogo combate-se com fogo e o também norte-americano Terre Thaemlitz - infame terrorista que tem na electrónica o seu principal instrumento de subversão – era escolha óbvia quando conta na sua discografia com um A-Muzak que visa contrariar todos as condutas socialmente correctas (principalmente, as sexuais) que a Muzak desde sempre procura salvaguardar. Thaemlitz invoca em “Millenial Muzak” o hip hop abertamente sexista e obnóxio como provável graffiti da candura Muzak, tal como a conhecemos a espaços comerciais onde os dias se devem passar sem alarmes ou surpresas de maior. Ou, então, procura, com isso, insinuar que a poluição é o novo Muzak pós-milenar. Muitos dos restantes presentes em Incidental Amplifications exploraram uma via mais próxima dos ruídos próprios dos espaços e encarregaram-se de combinar (e manipular) essas como que em jeito de questionação apontada à incerteza também recorrente: será mais lesante a música ambiente que os shoppings servem subliminarmente ou as interferências rotineiras que perturbam essa alimentação? Incidental Amplification não oferece respostas, mas propõe múltiplas perspectivas que estimulam amplamente a interrogação do seu conceito.
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