Enquanto valor que, após ser doado, passa a ser susceptível a todo o tipo de usos e aplicações transgressoras, a arte mais intemporal sujeita-se a combinações que dificilmente anteciparia o seu criador original. Há distância de 25 anos, seria vago qualquer palpite que adivinhasse a formação espontânea de uma microscópica fatia geracional que, estimulada pela liberdade celestial dos Cocteau Twins e requinte étnico dos Dead Can Dance, veio a amadurecer conforme o transcendental sentimento shoegaze dos My Bloody Valentine e Slowdive, e agora desemboca numa junção que, a ambos os códigos assimilados, adiciona generosas doses de exotismo (embora raramente concreto). Junção essa que jaz muito mais próxima de um imaginário costeiro-marítimo – plácido e convidativo a mergulho - do que da urbe zoológica violentada pelos Wolf Eyes ou Black Dice.
Apesar de proporcionarem agradáveis mutações os casos que se seguem, a arte em segunda ou terceira mão não incorre do risco de se sentir embaraçada por usurpações modernas que a vitimem (basta pensar nas tragédias que geram algumas apropriações menos inspiradas de samples sagrados). O bom nome dos Cocteau Twins não deve ser manchado pelo decalque de que é vítima em tão datado êxito de 80 como “Sempre que o amor me quiser” de Lena d’Água (repare-se nas semelhanças criminosas), assim como Tim Buckley não tem que responder como arguido na inquisição pudica que coloque em cheque o uso erótico da sua “Song for the Siren”, surgida na versão dos This Mortal Coil no paranóico Lost Highway, filmado por David Lynch. A finalidade é a ambição é a finalidade. Seguem-se três discos que residem muito mais num incerto ponto intermédio do que num início ou fim.
© Teresa Ribeiro |
Beach House Beach House 2006 Carpark / Sabotage + info |
Beach House é um paraíso desde sempre inabitado a que só acedem os tentáculos sensoriais mais capazes de se livrarem do fardo corpóreo. Figurativamente, equivale à curiosidade que sente a palma da mão quando se fixa à outra de um Peter Pan élfico pronto a conduzir ambas num voo de rumo indeterminado (a guitarra aeriforme e enevoada de Alex Scally, metade da dupla Beach House, fita um horizonte semelhante à Terra do Nunca). A partir daí, o imenso prazer passa pelo contacto com a prosperidade própria de um Éden abundantemente osmológico na variedade textural que proporciona e matrimónios que abençoa – passam a ser alegres e naturais convivas a presença hipnótica da voz de Victoria Legrand e o manto onírico que cobre por completo “Master of None”, descobrem-se em harmonioso entrosamento a essência fluida dos Beach House e o imaginativo molde que lhe serve em “Auburn and Ivory”, que terá de competir com “None but One” de Niobe pelo título de valsa do ano.
E é praticamente impossível contornar as metáforas na tentativa de descrever um disco que evita a todo o custo ser verbalmente exacto – na medida em que ascende muito acima dos caprichosos enquadramentos pop que lhe servem de trampolim, confiando parte da sua magia à sempre escapista mistura a cargo de Rusty Santos (responsável pela mesma função em Sung Tongs do Animal Collective), sendo assumidamente barroco (na selecção de teclados vintage) e detalhadamente florido , mas esteticamente mais solto e apto a evitar a armadilha de personalidade vincada que caçou as Cocorosie após o primeiro disco. Sem necessitar do notório hype que o apadrinhou, Beach House recomenda a visita a Baltimore, sede da dupla, sem apontar quaisquer atracções turísticas no seu mapa – convidando apenas a uma escuta de olhos fechados que, a seu tempo, encontrará a mais descontraída forma de habitar a tal casa de praia.
Over the Atlantic Junica 2006 Carpark / Sabotage |
As semelhanças mantidas entre os Over the Atlantic e os Beach House são poucas e meramente triviais: ambos os projectos incluem apenas dois membros (especializados nos seus respectivos instrumentos), percorreram em conjunto a mesma digressão de Outono deste ano, o selo editorial Carpark é-lhes comum, assim como a fixação temática sobre o imaginário marítimo e a metodologia fiel ao lema “a partir de menos, faz-se mais”. Por sua vez, as semelhanças entre os autores de Junica e os Postal Service são demasiadas - tantas que superaram a vontade pessoal de evitar referir a dupla composta por Ben Gibbard e Jimmy Tamborello, que excessivas vezes surgem por estas linhas.
Após a escuta do debute da dupla neo-zelandesa, Junica, torna-se realmente inevitável pensar num cenário actual dividido em duas eras – uma prévia e outra póstuma ao surgimento dos Postal Service em grande plano com Give Up. A garantia disso afirma-se desde logo numa “Glass Break” que se circunscreve ao que de mais derivativo podem produzir os dois membros de Over the Atlantic, Bevan Smith e Nik Brikman: um combinado pop de guitarras, oscilantes entre calmaria e rasgos mais declaradamente enérgicos, e uma drum machine automatizada que, por vezes, cede espaço a outros apontamentos de electrónica igualmente simétrica. Depois, as suspeitas confirmam-se com a persistência de “Heart Land” no termo “silhouette” (associável aos Postal Service) e com a sensação de levitação que proporciona “Fly to the States”. Fosse necessário retroceder um pouco mais no tempo, e muito facilmente se atribuiria a paternalidade estilística dos Over the Atlantic a uns New Order ou Pet Shop Boys – adocicados e simplificados por uma ingenuidade muito própria do indie caseiro. Apesar da previsibilidade imposta pelas algemas que o agrilhoam às suas musas, Junica acende a chama a algumas ideias que anexa às requisitadas e obtém magia química suficiente à combustão de “Kevin Shields”, em modo de shoegaze desenfreado e reclamante do enorme fosse que abre no disco assim que se impõe na dita faixa. O restante Junica derroca as suas porções mais frágeis sobre o orifício que forma uma guitarra trespassante. Sobra uma pérola e a sua graça compacta.
The London Apartments Logistics & Navigation EP
2006 Beggars Banquet / Popstock Portugal + info |