Muitas vezes se confunde guitarra portuguesa com Carlos Paredes,
o seu incontestado mestre. Muitas vezes se confunde Carlos Paredes com saudade,
melancolia, vivacidade, nostalgia, partilha, amor e Portugal. Ainda mais vezes
se confunde Carlos Paredes com génio, emoção, sentimento. As cordas que fez
vibrar fizeram-se sentir em cada casa, em cada caminho ermo, em cada rua que
ousou mostrar o seu nome. A sua música percorreu corações, tocou muitos, comoveu
outros tantos, mas nunca passou sem deixar a sua marca. Talvez a guitarra portuguesa
seja uma extensão dos seus braços, das suas mãos, da sua bondade. Talvez seja
o veículo de todos os sentimentos que ousou transmitir. Talvez Carlos Paredes
e a guitarra portuguesa sejam um só, e por certo não haverá nenhuma rua que
não exiba marcas desta união. Por certo não haverá alma que tenha permanecido
igual depois de ter sido tocada desta maneira.
Nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925, respectivamente filho e neto de
Artur e Gonçalo Paredes, dois grandes nomes da guitarra portuguesa. Quase naturalmente,
aos quatro anos de idade, começou a tocar guitarra portuguesa com o seu pai
apesar do esforço da sua mãe, que lhe arranjou duas professoras e tentou incutir-lhe
o gosto pelo violino e pelo piano. Mas os seus intentos revelaram-se infrutíferos:
Carlos Paredes havia nascido para a guitarra portuguesa. Com nove de anos de
idade muda-se com a sua família para Lisboa. Termina a sua instrução primária
no Jardim Escola João de Deus e após passagem pelo Liceu Passos Manuel, ingressa
no Instituto Superior Técnico, onde não chega a licenciado. Algum tempo depois,
Carlos Paredes casa e tem filhos, mas a guitarra continuava a ser para si uma
grande paixão. Quase trinta anos após os primeiros acordes, em 1957, a mestria
e a emoção da música de Carlos Paredes aparecem em disco pela primeira vez,
com o lançamento de Carlos Paredes, um EP publicado pela Alvorada (Rádio
Triunfo). Três anos depois, a sua música é utilizada na curta-metragem Rendas
de Metais Preciosos, de Cândido da Costa Pinto, começando assim aquilo que
seria uma estreita relação com o cinema. Essa relação terá tido talvez o seu
expoente máximo em 1962 aquando da composição de Verdes Anos, a banda
sonora concebida a pedido de Paulo Rocha, para integrar o seu filme com o mesmo
título. Ainda em 1962, vê a sua música ser incluída na curta-metragem de Pierre
Kast e Jacques Doniol-Valcroze, P.X.O..
Entre 1964 e 1966 dedica-se a compor a banda sonora para três edições cinematográficas:
Fado Corrido de Jorge Brun do Canto, As Pinturas do meu Irmão Júlio de Manoel
de Oliveira e Mudar de Vida de Paulo Rocha. Em 1966 vê música sua ser incluída
em Crónica do Esforço, uma curta-metragem de António Macedo. Um ano depois,
o primeiro longa duração de Carlos Paredes, então com 42 anos, é gravado nos
estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, com o técnico de som Hugo
Ribeiro e tendo Fernando Alvim como acompanhante à guitarra. O texto que acompanhava
o álbum era assinado por Alain Oulman, habitual colaborador de Amália Rodrigues,
nomeadamente na canção “Gaivota”, escrita por si.
Quem conhecia Carlos Paredes sabia da sua modéstia e simplicidade.
“Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não
compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do
que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas”, confessava
Carlos Paredes. Para si, aquilo que realmente importava eram as pessoas, e aquilo
que elas sentem: “As pessoas gostam de me ouvir tocar guitarra, a coisa agrada-lhes
e eles aderem. Não há mais nada. A música que faço é um produto das
circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo, e passará a ser encarada de
outra forma quando essas circunstâncias desaparecerem. É uma coisa que, se perdurar
graças aos discos, ficará apenas com o valor de documento, como acontece com
toda a pequena música, desde os Beatles ao Manuel Freire. E já ficarei muito
orgulhoso se, daqui a muitos anos, puder ser entendido como um compositor que
se integrava bem nos acontecimentos desta época…”, acrescenta ainda.
De 1968 a 1971, a sua música ilustra filmes de José Fonseca e Costa (A cidade
e The Colombus Route), Manuel Guimarães (Tráfego e Estiva) e Augusto Cabrita
(Hello Jim!) e participa em Meu País, assinado pela Cecília de Melo.
Em Agosto de 1971, Carlos Paredes entra em estúdio para a gravação do seu segundo
longa duração. De novo nos estúdios da Valentim de Carvalho, de novo com Hugo
Ribeiro. Assim, Movimento Perpétuo é editado em Novembro de 1971. Pouco
tempo depois, em 1974, Carlos Paredes dedica-se de corpo e alma à revolução
e percorre o pais de lés a lés, para espalhar a sua mensagem. Desentendimentos
com a Valentim de Carvalho, levam Carlos Paredes a editar Concerto em Frankfurt
(1983) pela Polygram. Registado ao vivo, Concerto em Frankfurt incluía
gravações de algum material que Carlos Paredes nunca havia editado em disco.
Em 1988, Carlos Paredes publica o seu terceiro disco de originais, Espelho
de Sons e em 1990 é publicado Dialogues, um álbum que marca o dueto
do guitarrista com o contrabaixista Charlie Haden. Nesse mesmo ano,
regressa à Valentim de Carvalho e começa a trabalhar num novo disco de originais
que ficaria incompleto devido a uma doença do foro neurológico que afectaria
Carlos Paredes.
Quando perguntado acerca da sua música, e da sua classificação, Carlos Paredes
explica: “A música que eu faço tem normalmente a estrutura da pequena canção,
da cançoneta. Por isso é que eu costumo dizer que sou um compositor de pequena
música. É um termo que nunca utilizo no seu sentido pejorativo, mas que foi
necessário, no critério de alguns musicólogos, para distinguir um determinado
tipo de música, a que também se chama música ligeira, de um outro, a música
clássica. Esta seria a ‘grande música’ e, como música ligeira me parece um termo
muito vago, então optei por lhe chamar ‘pequena música’.". "Quando eu falo de
pequena música, pretendo apenas qualificar uma música que, estruturalmente,
é simples e que pode até ser, do ponto de vista estético, pouco apreciada, mas
que não deixa de ser música. Se eu toco para várias pessoas que me ouvem com
atenção, é porque lhes estou a dar prazer. E mesmo que esteticamente seja uma
música menor, em termos de qualidade, não tenho que me envergonhar dela…”.
Nas suas mãos, a guitarra portuguesa respira, suspira. A delicadeza das suas
composições mostrava os encantos da sua personalidade. Carlos Paredes libertou
a guitarra portuguesa do fado empurrando-a para mais altos voos e exaltando
a vontade humana, a sensibilidade. Carlos Paredes manifesta a sua relação com
o fado quando diz: “O fado aconteceu em Portugal por razões bem concretas,
foi uma expressão autêntica de um certo tipo de lirismo”; “foi empobrecido
por força das pressões sociais que estavam interessadas na sua adulteração e
foi prejudicado na sua autenticidade por quem estava interessado em transformá-lo
em objecto mistificador". Para Carlos Paredes, a música não pode ser uma
soma de todas as partes, a conclusão óbvia de alguns acordes ou rendilhados:
“Para se fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as
pessoas. Não se pode fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente,
no mau sentido da palavra, a receber x à hora. Não pode ser assim."
Carlos Paredes atreveu-se a mostrar o que é ser português sem
proferir uma única palavra, apenas com a sua insuperável técnica, com os seus
dedos que, de forma violenta ou serena, percorreram a guitarra portuguesa durante
tantos anos. Diz-se que Carlos Paredes e a sua música são uma espécie de sebastianismo
ao contrário, pela saudade e nostalgia que recria. Embora o próprio o negue,
diz-se que Carlos Paredes é genial, e não podiam estar mais perto da verdade.
São dez dedos da qualidade do que é terno e humano, dez dedos de dor, da tristeza.
Dez dedos tão portugueses, tão nossos. Carlos Paredes recria as memórias a preto
e branco com sons que só poderiam ser seus. Ouvir “Canção Verdes Anos”, por
exemplo, é o mesmo que fundir o céu com o mar, a terra com o seu inconfundível
cheiro a molhado. É um misto de tradição e invenção, a transpiração desse sentimento
urgente que por falta de sinónimo se torna tão único: a saudade.
Carlos Paredes era uma força da natureza, de incandescente beleza, de perpétua
genialidade. Viveu sempre num mundo que cria ser bom, num mundo onde a verdade,
o prazer, a serenidade e a humildade eram os valores principais. Fugiu sempre
do que era banal, renunciou sempre a fama e procurou sempre guardar os momentos
bons para as pessoas boas: os seus amigos. A sua grandiosa obra não substituirá
nunca o prazer de o saber vivo, mas fará com que a sua memória perdure sempre
na mente de muitos de nós. O som da sua guitarra ecoará sempre onde houver esperança,
pois a sua vida é maior que a própria vida. Com a sua natural desvaidade confessava
há uns anos “A minha música só ficará no espírito daqueles que a viveram
no seu tempo. Não tem mais seguidores. Inevitavelmente vai passar...”. Felizmente,
estava errado. Hoje, todas as guitarras choram a sua morte.