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Harry Nilsson: O número mais solitário





A 17 de Janeiro de 1994, a cidade de Los Angeles foi abanada por um forte terramoto, que provocou a morte a 57 pessoas e fez milhares de feridos, causando também enormes danos em infraestruturas locais e, por arrasto, milhões e milhões de dólares de prejuízo. Um sismólogo poderia apontar, como causa, a localização daquela mesma cidade numa zona de risco; um evangélico, sobretudo os mais extremistas, culpariam Deus. Os amigos e família de Harry Nilsson são mais secos: «Ele deve ter chegado ao Céu e constatado que todos os bares estavam fechados»...

Secos, sim, mas com humor, o mesmo que Nilsson teve durante toda a sua carreira. Dois dias antes do terramoto, o músico sofria um ataque cardíaco, despedindo-se deste mundo com apenas 52 anos de idade. Para trás ficava uma história de alcoolismo, divórcios e abandonos: das primeiras mulheres, dos produtores que encontrou no início de carreira, até da música – morreu sem editar um álbum de estúdio desde 1980 e, salvo algumas canções em bandas-sonoras, o seu output musical foi nulo.



Terá pesado, nessa decisão, a morte de John Lennon, que para Nilsson foi mais que um Beatle, adjectivo que pressupõe uma condição sobre-humana. Não havia nada de sobre-humano – bem, tirando a facilidade com que tragavam álcool e drogas – na relação entre Lennon e Nilsson; eram, um para o outro, amigo, mentor, admirador. Foi John Lennon quem salvou o norte-americano de ser despedido pela RCA nos anos 70, já muitos anos depois de, ainda nos Beatles, ter dito que a sua banda favorita era... Nilsson.

O que fascinava, então, os Beatles e tantos outros músicos – Van Dyke Parks, Brian Wilson e Randy Newman, por exemplo? O que levou David Leaf e John Schienfeld a produzir Who Is Harry Nilsson (And Why Is Everybody Talkin' About Him, documentário onde entrevistam estes e tantos outros, em 2006? O que levou os anbb, de Blixa Bargeld e Alva Noto, a gravar uma versão de “One”, que pelo menos para este que assina serviu de porta de entrada para o estranho e sempre pop mundo de Harry Nilsson?

É simples: como em tudo na música, basta ouvir. “One”, lá está, cuja presença é inevitável, chamada telefónica transformada numa das mais belas das canções de coração partido. Ou “Cuddly Toy”, dedo apontado ao adultério
You're not the only cuddly toy
That was ever enjoyed
By any boy

You're not the only choo choo train
That was left out in the rain
The day after Santa came


que se transformou nas mãos dos Monkees. “Rainmaker”, os Beatles melhores que os Beatles. O space rock de “Jump Into The Fire”. A outra grande canção para corações partidos – “You're Breaking My Heart” –, cujo fuck you! do refrão precede o hit de CeeLo Green. “Everybody's Talkin'”, a de O Cowboy Da Meia-Noite. A maravilhosa versão do clássico “As Time Goes By”. E, claro, “Coconut”, as Caraíbas transformadas em Dadá. Entre outras tantas...



Infelizmente, Harry Nilsson não parece ter-se tornado num daqueles nomes ditos “indispensáveis” em qualquer análise sobre o que foram os anos 60 e 70 da pop. Porque, mais que obter sucesso junto do público, Nilsson teve-o sobretudo junto dos seus pares; um “músico dos músicos”, chamemos-lhe assim. E escreve-se “infelizmente” porque há aqui um enorme legado à espreita – mesmo que a sua extrema timidez o tenha impedido de subir muitas vezes a palcos, ou de dar digressões. O seu estatuto de culto é abordado no documentário supracitado: «Quando falo de Harry Nilsson, as pessoas ou entendem logo ou não fazem a menor ideia de quem seja», ouvimos dizer.

Harry Nilsson terá talvez deixado-nos demasiado cedo, ou pelo menos o suficiente para que as suas canções não obtivessem o mesmo estatuto histórico que, por exemplo, as de Burt Bacharach – aquele clássico de “música dos papás” que, mais tarde e através de tributos diversos (All Kinds Of People Love Burt Bacharach, de Jim O' Rourke, por exemplo), conseguem encontrar o seu espaço junto das gerações mais jovens. Lastimável, mas não tanto quanto deixá-lo permanecer na sombra. 25 anos após a sua morte, há que dar-lhe a atenção que ele mereceu e continua a merecer.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
16/01/2019