Ela só quer que a deixem cantar até ao fim, como tão bem explica no tema com que abre o seu novo, e majestoso álbum, A Mulher Do Fim Do Mundo, por entre um instruental maníaco e o gorgolejo que se escuta na última palavra. A história de vida de Elza Soares, as dificuldades pelas quais passou, os desgostos, as alegrias e as lutas muitas, dariam um filme. Para já, parecem ter resultado em disco. Hoje, a cantora brasileira inicia a sua mini-digressão por Portugal, actuando na Casa da Música, no Porto, e descendo depois até ao Teatro Aveirense, em Aveiro, findando com um concerto no Vodafone Mexefest, em Lisboa. Perguntámos a várias Mulheres a sua opinião sobre o álbum, a cantora, a vida, o feminismo, sem censuras, sem limites. Isto é o que disseram.
Ananda Muylaert: Não há duvidas: o fim do mundo de A Mulher Do Fim Do Mundo é a própria Elza - negra, idosa, latino-americana, mulher. Em um contexto onde a voz de uma mulher parece não alcançar ninguém, o que Elza faz é muito mais que simplesmente música. Ela quebra com tudo - fala com mulheres, as quais a arte, o feminismo neoliberalizado, a política e o resto do mundo nem sequer buscam qualquer tipo de diálogo, ou de olhar; na verdade, uma categoria mal considerada humana.
Mostrando uma flexibilidade impressionante, a cantora passeia pelo rap e pelo samba, flertando com guitarras de blues. O álbum, um renascimento de Elza quase como uma fénix, é um sopro de ar fresco no que diz respeito à criatividade dos arranjos; a música é simplesmente impecável - violinos lúgubres como os de "Mulher Do Fim Do Mundo" dividem espaço com violas, sambas-breque com sintetizadores e eventuais cavaquinhos ao fundo - e isso parte do time fantástico de novos músicos e produtores de São Paulo, como Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Thomas Rohrer. As guitarras do fundo de "Luz Vermelha" beiram quase o noise, não negando de onde os músicos vieram, e constituindo um dos fundos instrumentais mais bem-construídos da música brasileira recente - noise esse que chega deliciosamente na última faixa, "Comigo", que encerra o álbum de forma tão brilhante quanto "Coração do Mar" o inicia. Em todo caso, é complicado se prolongar demais à respeito da instrumentalidade do álbum porque ele gira intensamente em torno de sua composição lírica - e, quando as letras conseguem chamar mais atenção do que uma equipe técnica e criativa instrumental simplesmente impecável, é porque elas são realmente algo - e da força da voz e da figura de Elza como mulher negra.
E essa voz fala sobre sexo, violência doméstica, transgeneridade, morte, racismo, a vida na periferia, e o amor e a raiva e tudo que há entre os dois; os temas que costuram a (intensa) trama musical do álbum são jogados sobre nós da forma mais crua possível, como se em uma narrativa literária cantada para nós por Elza (e aliás, falando de literatura, a primeira faixa do álbum é um poema de Oswald de Andrade, um dos maiores modernistas brasileiros). E, de fato, ela nos narra a história de sua vida: Elza teve sete filhos, cinco dos quais ela teve antes dos 21 anos, quatro que já faleceram; foi perseguida e assediada publicamente, moral e fisicamente, por se casar com Garrincha; passou fome, morou na periferia, foi mãe adolescente. Mais do que isso - Elza nasceu mulher em um país de terceiro mundo, com um dos maiores índices de feminicídio mundiais, e negra, em um país extremamente racista.
O que isso significa é que o que a cantora faz é algo sem precedentes, algo que deveria ser visto como tão revolucionário quanto o que o Oswald que abre seu álbum fez. Hoje ela representa uma classe constantemente ignorada. Sua voz rouca canta com potência infinita sobre assuntos de extrema importância sob um ponto de vista tão pouco exposto na mídia e na política. Sua música é política, também; Elza é uma feminista crua, reativa, certa de si - apocalíptica - características tão necessárias em tempos de tantos questionamentos e de tantos discursos vazios - e seu discurso transborda de significado, de sentimento, de potencial de alcance. Esse alcance se torna muito mais potente quando a artista diz que vai ligar para o 180 (Disque Violência contra a Mulher no Brasil) e vai denunciar publicamente o homem que a agredir, no hino "Maria Da Vila Matilde": o que ela faz é dar força, ainda que simbólica, a milhares de mulheres que passam por esse tipo de situação e se recusam a denunciar por medo.
E, quando em "Maria (…)", ela diz que vai soltar o cachorro, jogar água fervendo, esculachá-lo para sua própria mãe, o que Elza faz é reagir da mesma forma a quem a (nos) age com violência dos os dias. Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim, um dos trechos mais icônicos de todo o álbum, representa a revolta da mulher contra o homem, do subordinado contra o subordinador, do povo contra o rei, uma revolução completa no pensamento hierárquico de género, um movimento de reação mais do que justificável - necessário, até. O que Elza é, mais uma vez: uma mulher negra, idosa, latino-americana, a mulher que canta o fim de um mundo patriarcalista. A Mulher Do Fim Do Mundo é um manifesto, quase, para que a voz de todos como ela sejam escutadas, que a periferia esteja na arte, que a violência racial e de género sejam discutidas, que todos também possam cantar - e que cantem até o fim.
Helena Silva: Senhora de voz monstruosa e dona do melhor disco que ouvi nos últimos tempos, Elza é um exemplo, não só pela sua música, mas pela enorme mulher que é.
Lembro-me de ficar boquiaberta quando, ao ouvi-la pela primeira vez, descobri que tinha perto de 80 anos. Estava perplexa. Nunca, num quinto de século, tinha ouvido alguém daquela idade cantar com tanta garra e energia. Um desejo tomou conta de mim: "quero ser assim quando tiver 80 anos" – isto se algum dia lá chegar.
Mas, para lá da voz, há todo um retrato do papel da mulher actual que me deixa agarrada ao seu trabalho, com temáticas que vão desde o preconceito à violência doméstica, como é o caso da "Maria Da Vila Matilde". Elza é mesmo A Mulher Do Fim Do Mundo que, apesar da sua idade, nos prova que não há limites para a insubordinação perante os cânones (antiquados?) do comportamento feminino.
Isabel Cordovil: É importante, em primeiro lugar e em jeito de subtítulo, assumir que eu não conhecia a Elza Soares antes de este álbum. Dá para viver muito tempo sem saber do "Planeta Fome".
Lembro-me de no final de 2015, num ambiente de bar, ter perguntado a um amigo brasileiro realizador de cinema qual tinha sido, para si, a grande obra prima cinematográfica do ano. Ele respondeu-me que o melhor filme do ano, dessa vez, tinha surgido num formato inesperado (e tal como todas as obras primas: a mensagem, ou melhor, o génio, é transversal a categorias), tomava a forma da música "Mulher Do Fim Do Mundo". Sem meio de a ouvir naquele momento, perguntei-lhe sobre o que era, se havia um assunto ou um estado, e sucedeu-se que: «É talvez sobre você chegar a casa ao fim de 100 anos de cansaço e não se sentir em casa. E aí percebe que na verdade nunca sentiu. Depois, já na cama, fecha os olhos e procura muito uma imagem, uma só memória que seja, de felicidade sólida e real que a ajude a adormecer, mas não consegue lembrar de nada coeso o suficiente. E a única coisa que existe com certeza absoluta é que amanhã terá de sair de casa para a mesma gente e o mesmo mundo, e terá de apertar a mão a quem já a abandonou, e que por isso a abandona de novo todos os dias».
Perguntei também como é que era feito o álbum, e de quê. «É feito com aquela raiva particular que só pode vir de ter sido traído pelo melhor amigo, ou de ter descoberto que toda a história do mundo foi mal contada, e o que fazer senão ir dançar para uma cave suada. Ou saber que a morte está a subir pelas escadas do prédio e você prefere experimentar o voo do sexto andar».
Uns dias depois, no jardim, perguntaram-me qual era a peça escultórica do ano. Eu respondi que estava gravada num concerto que tinha sido captado no Auditório do Ibirapuera. A banda de dez pessoas tocava numa penumbra azul, rodeando um Monte Olimpo no centro do palco de onde surgia um trono de ferro. A mulher muito velha vestia ferrugem a partir dos seus pés que se ia dissipando até à cabeça. Ela mexia-se da maneira como o metal se mexe. Num momento a escultura falava: Solto quase morto / Corpo, o meu corpo / Caminha, na minha sombra.
Umas semanas depois alguém me perguntou sobre o livro do ano. Para mim bastou-me o poema profético com que o álbum terminava: e o que me fez morrer, vai-me fazer voltar.
Joana Esperança Andrade: Reza a história que, durante uma discussão conjugal, o meu bisavô se terá exaltado e levantado a mão à minha bisavó, que rapidamente pegou numa frigideira para se defender, anunciando que, se lhe batesse, seria a única vez que o faria. Lembro-me desta história, cuja protagonista nasceu precisamente 100 anos antes de mim, sempre que oiço a "Maria da Vila Matilde", do último disco da Elza Soares.
Elza tem uma história de vida tristíssima. Viúva aos 21 anos, com 5 filhos para criar, cantava para poder pagar as contas e os medicamentos para a família. A sua perseverança, dedicação, e, claro, a sua voz, fizeram com que fosse construindo uma carreira sólida e se tornasse num dos grandes ícones da música brasileira. No entanto, A Mulher Do Fim Do Mundo é o primeiro disco de originais de Elza Soares, ao fim de todos estes anos (não se sabe ao certo a sua verdadeira idade), e é sem sombra de dúvidas um monumento ao feminismo e a todas as mulheres do "planeta fome" que lutam por vidas melhores ou, simplesmente, pela sobrevivência. A "Maria Da Vila Matilde" incentiva as vítimas de violência a ligar 180 (a Secretaria de Polícias para Mulheres, no Brasil), "Benedita" conta a história de um transsexual toxicodependente que é «bem mais que uma menina», e "Comigo" marca o final, poderosíssimo e de vir às lágrimas, com a voz de Elza a capella (Levo minha mãe comigo de um modo que não sei dizer / Levo minha mãe comigo pois deu-me seu próprio ser).
A Mulher Do Fim Do Mundo é um disco que todas as mulheres - e homens, claro - deviam ouvir, sobretudo naqueles dias em que achamos que a nossa vida é muito difícil. Porque mesmo no fim do mundo, Elza não desiste. E só lhe podemos agradecer por isso. Porque se a da Penha é Brava, imagine a da Vila Matilde.
Teresa Vieira: Começou a (en)cantar há mais de 50 anos, como um ser vindo de outro planeta - o ignorado<, esquecido, escondido "planeta fome". Apresenta-se a todos nós, agora, como a A Mulher Do Fim Do Mundo: uma mulher munida de armas, que vê o terror, a miséria e o sofrimento em cada esquina e sorri de volta. Diz que cantar, para si, é «remédio bom. É remédio da alma». Mas este não é um processo só de um "eu" para um "eu": ouvir é o nosso aviso de alerta e a nossa cura.
Senhoras e senhores: Elza Soares.
Qualquer tentativa de descrição biográfica fidedigna de Elza torna-se uma tarefa inevitavelmente impossível. A imensidão dos traumas, dos desgostos, das perdas, e, acima de tudo, do sofrimento da sua vida não é possível de transmitir através de palavras parcas de quem - claramente - não entende nada dos males da (sua) vida.
No entanto, não será necessário recorrer a este tipo de estratégias para entender Elza: A Mulher Do Fim Do Mundo é a autobiografia lírica e sonora que esta mulher de armas desde sempre mereceu. Uma exposição do seu "eu" mais íntimo, que nos envolve numa mistura de ritmos quentes, de guitarras fervorosas, de palavras sentidas, de uma voz inigualável.
Despe-se de formalismos e escapa às normas. Mas mais do que isso:
(Não) é a mulher sofrida. (Não) é a mulher apaixonada. (Não) é a mulher rancorosa. (Não) é a mulher lutadora. (Não) é a mulher perdedora. (Não) é a mulher vencedora. (Não) é a mulher da família. (Não) é a mulher só. (Não) é a mulher do samba negro. (Não) é a mulher que chora. (Não) é a mulher que sorri. (Não) é a mulher que canta. (Não) é a mulher que grita.
Não é uma mulher por partes: é, sim, a junção de todos esses elementos da sua essência, de todas as eventuais caracterizações que lhe poderão atribuir. É, como todas nós, uma Mulher.
Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés
O início de A Mulher Do Fim Do Mundo" é a "Mulher Do Fim Do Mundo", uma canção com os jeitos do samba, com uma potência exponencial que conquista e que nos divide: é um lamento, mas é, também, uma celebração e uma eventual vitória através do simples e puro acto de cantar. Um - possível - hino da sua existência e da luta constante contra os infortúnios da vida e contra todas as barreiras. O remédio, como dizia, é cantar: e esta é a sua derradeira vitória.
Olho pro meu corpo, sinto a lava escorrer
Passamos por "Pra Fuder", que induz o desabrochar da sensualidade, a perda de todo o pudor - pra fuder, pra fuder, pra fuder - e a exposição de um corpo ardente, em chamas. Não há força pra deter / Me derreto tonta, toda pele vai arder. Acima de tudo, não só espalha o fogo para os nossos corpos - o ritmo incessante, a velocidade alucinante, o tom explosivo não dão para controlos corporais naturais -, como nos fala daquele que é um dos instintos humanos mais básicos de uma forma absolutamente sincera e pura: as sensações e as vontades de "fuder".
Uma questão: porquê a estranheza quando se ouvem estas palavras?
Outra questão: porquê a estranheza de se ouvir estas palavras de uma mulher?
Estas questões não serão respondidas aqui. No entanto, metendo de lado eventuais eufemismos, será possível dizer que uma mulher também quer foder, e também quer ser fodida. Elza é uma mulher e expressa as suas vontades. Sem filtros. Abaixo a estranheza.
Cadê meu celular? / Eu vou ligar pró 180
Não passamos por "Maria Da Vila Matilde": ficamos presos nesta que poderá ser uma grande inspiração para qualquer pessoa - indivíduo, sim - que tenha enfrentado momentos de violência doméstica, tanto psicológica como física. Alguns consideram que é, desde há algum tempo, um assunto cliché, demasiado abordado e a que, invariavelmente, alguma mulher se irá referir. No entanto, não é um cliché: é uma realidade dura, é o dia-a-dia de inúmeros indivíduos e não há modas para sofrimento. Mas, mais do que isso, esta não é a abordagem "cliché" deste tópico "cliché": é um grito de força, é um grito que expulsa o mal de forma abrupta, que enfrenta o problema de cabeça erguida. É um grito que diz a todo o mal: "Sai!"
Registemos este momento para a posteridade: Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim / Mão, cheia de dedo / Dedo, cheio de unha suja / E pra cima de mim? Pra cima de moi? / Jamais, mané!
Poderíamos - e, se calhar, deveríamos - passar a pente todas as canções deste álbum (tão simples e tão complexo), que variam não só em termos de sabores de palavras - a mágoa, a alegria, a euforia, a tristeza -, como também de sonoridades - a mistura do samba sujo, com o noise rock, o jazz, os blues.
Mas o melhor é mesmo ouvir, sentir o "eu" de Elza Soares, que é o "eu" de todas as pessoas, de cada um de nós. Levo minha mãe comigo. De um modo que não sei dizer: levemos um pouco de Elza connosco, todos os dias. A força que pode ser extraída desta voz, destas melodias, destas palavras é uma prova clara da importância da existência - e da criação artística - de pessoas assim: que, perante o bem, sorriem e que, perante o mal, sorriem. Que, perante a vida, cantam. E nós escutamos.
O que é o feminismo?
Uma das bases para o alcançar da utopia social é a igualdade - pensada, sentida, expressa - entre todos os seres humanos. Esta igualdade prevê uma unidade na diferença - porque, convenhamos, alguns indivíduos preferem bitoque, e outros preferem lasanha de soja -, que se centra no respeito pelo outro, de ser humano para ser humano.
O feminismo luta contra as barreiras criadas pelas diferenças medíveis à escala de um olhar, e à escala da sociedade. O feminismo é a luta pelo respeito do outro, pela liberdade de ser um "eu" sem noções pré-concebidas, sem generalizações baseadas em questões de género e sexualidade.
O feminismo é a luta de todos, por um "nós" unido na diferença, mas também na igualdade, de algo tão simples como o acto de ser humano.