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Temperaturas de aceleração industrial





Numa altura em que estão em voga as biopics e os documentários sobre bandas, géneros ou movimentos contraculturais mais ou menos esquecidos, surge-nos Industrial Soundtrack For The Urban Decay, realizado por Amélie Ravalec e Travis Collins, o último dos quais concedeu uma entrevista ao Bodyspace. O filme, esse, versa sobre aquilo que se veio a apelidar de música industrial, género que juntamente com o punk abalou o mundo no final dos anos setenta, e contém entrevistas com alguns dos seus maiores proponentes, como os obrigatórios Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire e SPK, entre muitos outros. Agindo ainda hoje como uma influência para inúmeros artistas da esfera indie, experimental, e não só, a música industrial há muito que precisava do seu próprio documentário. Este é o primeiro. Espera-se que não seja o último. Ainda por sair, está agora a levar os últimos retoques.

Porquê a música industrial? O que é que no género vos atrai?

É um género de música que merece mais atenção. Muitas das bandas que entrevistámos, como os Throbbing Gristle, os SPK ou os Cabaret Voltaire, inspiraram imensos músicos. A música industrial pode ser ao mesmo tempo negra e bela, que é o que mais me atrai neste género. Não existem limites dentro da música industrial, daí que elementos de outros géneros tão díspares como a música clássica, a folk, o hip-hop, bandas-sonoras para cinema e todas as formas de música experimental, electrónica e noise tenham sido incorporadas pelo género. É também um dos poucos estilos de música que é directamente inspirado pela arte, sendo que muitos dos músicos que o originaram tinham raízes na Arte Postal e foram inspirados por movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo, e por escritores como William Burroughs e Brion Gysin. Continuo a descobrir bandas novas e clássicos do industrial esquecidos sempre que compro discos. Posso não ter ouvido alguns deles quando foram editados, mas o impacto é o mesmo.

Considerando quão influentes são alguns dos artistas que entrevistaram para algumas das bandas de hoje em dia, porque é que acham que o vosso documentário é o primeiro a versar sobre a história do movimento industrial?

Não tenho a certeza. Conhecer estes músicos e documentar a história da música industrial foi uma experiência que mudou as nossas vidas. Esta música influenciou diversos géneros, desde o metal, ao rock, ao noise, ao electro. As pessoas têm hoje em dia um acesso muito mais facilitado à música, a música industrial ganhou uma audiência global. Porquê fazer um filme sobre isto agora? [Partimos de] uma posição privilegiada, fazer um filme quando podemos conhecer os músicos. Seria difícil fazê-lo quando estes músicos já não estiverem vivos, e eu próprio não o quereria. Muitas das pessoas que entrevistámos continuam a fazer música excelente. Após trinta anos em digressões, a escrever canções e a editar discos, há que respeitar a paixão que eles têm pela música.

Qual era o vosso objectivo principal ao realizar este filme? Há quem diga que os documentários sobre determinados géneros musicais os transformam em "peças de museu". Este filme age mais como uma celebração da música industrial, um contar da sua história, ou ambos?

Seria óptimo que o nosso filme fosse considerado uma referência para o género. A Amélie e eu investimos tanto sangue, suor e lágrimas neste projecto que agora mal posso esperar para me afastar e deixar que o filme ganhe uma vida própria. Espero que inspire as pessoas, que as leve a explorar a música industrial, ou que introduza novos fãs a músicos ou canções com as quais não estejam familiarizados. Trabalhar num filme pela primeira vez tem sido um enorme processo de aprendizagem. Espero que as audiências o apreciem, quando sair. Num aparte, ainda precisamos de ajuda com os subtítulos, e agradecemos donativos visto que ainda precisamos de cobrir despesas de pós-produção. Se alguém puder ajudar, contactem-nos através do nosso website.

Numa era em que já nada parece desafiante ou chocante, acham possível que um género ou um movimento semelhante à música industrial possa nascer?

A música é a banda-sonora da vida, pode inspirar-nos, expressar dor, perda, amor, pode ajudar-nos a reviver momentos do nosso passado. Por isso sim, creio que ainda existe espaço para música que possa chocar ou desafiar as pessoas. Nos anos setenta e oitenta, a música industrial era essencialmente choque: ferramentas eléctricas em palco, sexo ao vivo em espectáculos dos COUM [Transmissions, colectivo que deu origem aos Throbbing Gristle], vídeos gráficos de autópsias em concertos dos SPK... hoje o mundo é diferente. O que anteriormente era tabu, hoje é aceite ou, quanto muito, menos chocante. Os músicos e os artistas podem hoje em dia fazer declarações sociais e políticas numa escala muito maior e alcançar um ouvido global em tempo real, o que reduz a necessidade de recorrer a medidas extremas. Há novos movimentos musicais a surgir todos os dias, mas acho que a próxima geração é que decidirá se deverá abraçar esta música com uma cultura própria, tal como o punk, o techno ou os fãs de música industrial o fizeram no passado.

De todos os músicos e artistas que entrevistaram, com quem mais gostaram de falar? Quanto tempo levaram para juntar todas as entrevistas?

O Stephen Mallinder [membro fundador dos Cabaret Voltaire] é um velho amigo, dos tempos em que viveu na Austrália, por isso foi óptimo voltar a vê-lo para a entrevista. Foi ele quem me introduziu a muito boa música ao longo dos anos, e deu-me inclusive alguns lançamentos menos conhecidos dos Cabaret Voltaire, como o seu último álbum de estúdio, The Conversation [editado em 1994], o primeiro trabalho dele a solo, [o maxi-single] "Temperature Drop" [1981], e uma cópia da remistura do Derrick May para a "Keep On" [1990]. Li imenso sobre os primeiros anos dos Cabaret Voltaire mas foi interessante ouvir a história da banda pessoalmente, através do Mal; foi uma oportunidade para ouvir mais acerca da história dele dentro da banda. Gravámos trinta horas de entrevistas, por isso levou-nos algum tempo a condensar isto para 52 minutos de qualidade. A Amélie é uma realizadora talentosa: gosta que a acção, nos seus filmes, se desenrole rapidamente e que seja o mais concreta possível, o que é refrescante, visto que muitos documentários musicais carecem de energia. Foram dois anos em que trabalhámos no filme todos os dias. Estamos perto de o completar, faltando só resolver questões administrativas e de licença e dar os retoques finais.


Será a "música industrial" apenas para "pessoas industriais"? Crêem que farão com que mais gente ouça este tipo de música, pessoas que nunca a tenham escutado antes, ou o documentário é apenas para os "fãs verdadeiros"?

O Industrial Soundtrack... é um filme para todos aqueles que gostam de música. Sempre gostei de ver documentários. Também leio exclusivamente livros de não-ficção porque adoro factos e de ter um entendimento melhor da história e do contexto - ajuda a que aprecie algo ainda mais. Envolvemos os fãs e os seguidores ao longo do processo de realização do filme, por isso este foi influenciado, de certa forma, por essas interacções.

Já que não existiria documentário sem a música, qual é o teu top cinco de discos de música industrial?

Os meus cinco hinos do industrial (por hoje...) seriam: "Metal On Metal", dos Kraftwerk, "Discipline", dos Throbbing Gristle, "Mekano", dos SPK, "Warm Leatherette", de "The Normal e "Raising The Count", dos Cabaret Voltaire.

Quando é que sairá o documentário, e onde é que será exibido pela primeira vez?

Estamos a submetê-lo a festivais internacionais de cinema para 2015. Já tivemos muitos pedidos de exibição por todo o mundo, é óptimo que exista tanto interesse no filme. Esperamos que continue quando sair. Também gostávamos que fosse exibido em Portugal, por isso se alguém nos puder ajudar, que nos contacte!


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
15/10/2014