Os Throwing Muses são um tormento permanente para Kristin Hersh. Na recusa de levar o luto da sua banda de sempre até ao fim – num misto de retirada rancorosa do jogo editorial e desalento pela exigência financeira de manter uma banda marginal em actividade ao mesmo tempo que apareciam bebés, casas e contas para pagar –, os Throwing Muses tornaram-se uma ferida aberta, em carne viva, um golpe cruel na forma sob a qual Hersh queria idealmente lançar a sua música. Por isso, nunca deu a banda por terminada. Antes escolheu ruminar incessantemente a possibilidade de um regresso, mesmo que episódico. E, verguemo-nos perante a sua obstinação, a verdade é que os episódios foram acontecendo após a separação em 1997. Um segundo álbum homónimo em 2003, uma digressão europeia (esticou até Madrid, não chegou a Portugal) em 2011, por alturas da Anthology, um novo álbum em 2013.
Só que chamar “novo álbum” a Purgatory/Paradise roça o insulto. É um livro de 64 páginas, com textos de Hersh (tal como acontecera com o disco a solo Crooked), design de David Narcizo e 32 canções novas. O que nos diz, naturalmente, que Kristin Hersh deve compor em permanência para todos os seus projectos (mesmo que moribundos, como os Muses, mesmo que quase invisíveis, como os 50 Foot Wave – coisa pouca, para a Nazaré). Ou, em alternativa, que a excitação foi tanta com a decisão de regressar a estúdio com o trio que lhe saiu um jorro criativo capaz de alimentar seis anos da carreira de bandas fiéis ao bienal picar o ponto editorial.
As canções sempre foram uma espécie de maldição para Kristin Hersh. Vozes a dançarem-lhe na cabeça e só podendo ser aplacadas com a conversão do seu assombro numa música que lhe dê vida exterior. Uma mão-sonda atirada para dentro da cabeça, arrepanhando a voz pelo cachaço e atirando-a contra as cordas da guitarra até grudar. Mais ou menos assim. Mas Purgatory/Paradise pode ter sido o último exemplo deste método peculiar. Hersh tentou mais um tratamento e parece que, passados cerca de 30 anos, descobriu a mordaça para o seu tormento.
Seja como for, estas novas canções são o prolongamento natural da linhagem que Hersh inventou para os Muses desde que Red Heaven já não contou com Tanya Donelly (de malas aviadas para as Breeders) e depois para a composição de um dos objectos mais insólitos, misteriosos e belos da história da música pop. Star, primeiro disco dos Belly, é Donelly a pegar numa matéria que deveria ter servido de lastro para o segundo álbum das Breeders mas roubado a tempo de ser outra coisa, menos a pender para a crueza, mais a afogar-se num estranheza doce de um conjunto de canções de uma pop feérica, fantasiosa, empurrada para um universo infantil de um conto de fadas com as costuras rebentadas à mostra. Estatelam-se bicicletas, voam dentes, espetam-se dedos nos olhos para conseguir uma lágrima, alimentam-se árvores e luas vermelhas adormecem como se o mundo ficasse imobilizado, com receio de que o mais pequeno som pudesse acordá-la. (Donelly, lamentavelmente esquecida no seu trajecto a solo, gravaria ainda dois magníficos álbuns a solo – Lovesongs for Underdogs e Whiskey Tango Ghosts – antes de preferir a maternidade, a dela e a de quem mais pudesse ajudar).
A partir de Red Heaven, as canções de Hersh com os Muses continuaram a soar instantaneamente suas, fáceis de reconhecer em qualquer alinhamento policial mesmo que para lá atirassem as cópias esforçadas das Sleater Kinney, mas encostadas a uma sombra de normalidade que não existia, nem em migalhas, nos dois primeiros discos. Por alturas de Throwing Muses e House Tornado, 86 e 88, quando se tornaram a primeira banda norte-americana a assinar pela 4AD e a arrastar os Pixies pela mão, o rock das Throwing Muses (que se lixe a gramática de haver lá um homem no meio de três mulheres nesta altura) era coisa que desafiava a lógica. A voz de Hersh nunca parecia entrar no tempo que se adivinhava, as guinadas constantes na direcção de cada tema promoviam uma originalidade que não era forçada mas sim ditada por uma banda tão cheia de ideias em atropelo que estas reclamavam e roubavam a atenção a cada minuto.
Isto, sem um exagero que tornasse a música caricatural, criou um buraco em que as Muses se enfiaram sem espaço para entrar mais ninguém. A porta fechada à linearidade, os ambientes nervosos de um pós-punk em que tudo era permitido sem consciência de regras e, ainda assim, um novelo melódico irresistível apesar da sua imprevisibilidade fixaram um tempo irrepetível. Mesmo agora, num regresso tocante de tão obviamente saído da pele e conseguido por essa recusa obsessiva de enterrar a banda, Hersh é outra, os Muses são outros, as canções (excelentes, sempre) já não soam à revelação de um mundo do qual pouco se sabe e só o espanto se espera.