Descrever a riquíssima história da R&S Records em meia dúzia de linhas é tão injusto como complicado. A R&S (iniciais que representam o nome do casal fundador, Renaat Vandepapeliere & Sabine Maes) inscreve-se na curta lista de sucessos de pequenas editoras independentes que surgiram em finais de 1980 ou inícios de 1990 que foram responsáveis pela angariação instintiva de novos talentos da música electrónica na Europa ou o inteligente acolhimento de nomes já estabelecidos do panorama techno ou house de Detroit ou Chicago.
Se desde os meados de 80 já existiam nos Estados Unidos editoras – como Trax, Metroplex ou Transmat – com plataformas amadoras de produção, divulgação e distribuição cada vez mais especializadas (que reuniam as figuras mais prolificas da cena house ou techno), só depois da "explosão" do acid-house e da loucura das raves em Inglaterra – e do consequente contagio Europa fora –, começaram a surgir pequenas etiquetas realmente interessadas em apostar forte (agenciamento incluído) numa massa jovem criativa que, vivendo, respirando o espírito selvagem das raves, condensava espontaneamente o que de melhor se fazia do outro lado do Atlântico enquanto abraçava a multiculturalidade das suas cidades. Os undergrounds londrinos eram particularmente ricos pela forma como acolhiam as electrónicas emergentes, por exemplo, da Alemanha ou as cadências vindas da Jamaica.
A Alemanha, por si, não se ficava atrás, ganhando novo fôlego em finais de 80 com fórmulas químicas que sabiam rentabilizar ao máximo a escola electrónica de 70 de cariz experimental que tinha ainda nos Kraftwerk o símbolo absoluto da inventividade e sucesso. A receptividade do público, devidamente estimulado pela onda de Detroit, crescia a um ritmo superior às cadências mais robustas do hardcore, formalizando-se movimentos peculiares em torno das mais diversas variantes do techno (as UFO, mais tarde as Love Parade, por exemplo), provando – especialmente depois da queda do muro de Berlim – a existência de uma invulgar vitalidade no meio (Paul van Dyk chegou mesmo a considerar o techno uma força social unificadora entre Alemanhas culturalmente tão distintas). O eixo Inglaterra, Alemanha e, amiúde, a Holanda definia assim uma série de sonoridades que se destacavam pela sua personalidade, contagiando cada vez mais cérebros para uma causa que tinha como máxima o escapismo.
O casal responsável pela R&S Records, instalado na pacata vila medieval de Ghent – Bélgica –, não andava indiferente e tinha perfeita consciência do movimento crescente, do desejo de produzir de muitos, das ideias inovadoras que pairavam nos clubes mais recônditos. Ideias que se tornavam num longo e eficiente rastilho que conduzia todos para algo ainda mais explosível. A R&S não foi a única a promover novos talentos e novas sonoridades, na Inglaterra pululavam mini-labels que reforçavam a oferta, rentabilizando o capital criativo de todos os seus “assalariados”, principiantes ou veteranos. Editoras como a Warp, Rising High ou a XL Recordings, na Inglaterra, ou a Harthouse e a Eye Q, na Alemanha, cresciam desenfreadamente como cogumelos no mato.
Renaat Vandepapeliere, hoje com 53 anos, era à época um homem decidido. Um homem com uma missão. Amava declaradamente toda a cena, percebia os músicos, estimulava-os. Mas muita determinação e dedicação – num escritório que também era seu lar – levou-o a rotas de colisão com alguns nomes que o acusavam de ser um indivíduo de difícil trato. Aphex Twin ou os Jam & Spoon recusaram-se a editar material original na R&S alegando que a falta de ortodoxia no negócio não servia os propósitos das carreiras que pretendiam construir. Renaat, acusado várias vezes de ser impulsivo, chegou mesmo a dar troco, afirmando, até com alguma deselegância, que o sucesso de alguns dos artistas dissidentes lhes tinha subido à cabeça e que, influenciados por terceiros, ganhar dinheiro de qualquer forma eram os seus únicos desígnios. Como o período era particularmente fértil no que a novos talentos dizia respeito, Renaat não se incomodou muito com as saídas, seguindo em frente com a sua estratégia. “Tomorrow there will be another Richard” afirmou na altura em entrevista à editora Volume (na fundamental colectânea Trance Europe Express de 1993) a propósito da saída de Richard D. James. Uma óbvia estratégia de fuga para a frente que, apesar das múltiplas vicissitudes, elevou a R&S a um estatuto inconfundível.
Além do principiante Aphex Twin – que estreou-se na editora com o clássico Digeridoo, seguindo-se o primeiro volume de Selected Ambient Works –, a R&S e suas subsidiárias acolheram no seu catálogo variadíssimos nomes, muitos deles essenciais para perceber a evolução da música electrónica nestes últimos 20 anos e muitos estão ainda hoje no activo. Jaydee – o trance hipnótico e inconfondivel de Plastic Dreams, um marco no género –, os já citados Jam & Spoon, os Sun Electric – projecto de Max Loderbauer –, DJ Hell, Thomas Fehlmann, 69 – de Carl Craig –, Biosphere, Patrick Pulsinger, CJ Bolland, System 7, passando pelos veteranos como Joey Beltram ou Model 500 – de Juan Atkins –, todos têm o seu nome crivado nas paredes da sala de honra desta mítica casa.
Com a euforia a perder a excitação, e muitas editoras propositadamente especializadas – em demasia – em determinadas frentes, o colapso de muitas acabou por tornar-se numa inevitabilidade dada a evolução de alguma música electrónica que a segunda metade dos anos 90 promovia. Um eclipsar de labels que levou consigo muita gente jovem que, com o seu amadurecimento pessoal, regressou à realidade, começando a dedicar-se às suas profissões. Ou, preferindo o universo da produção, decidiu procurar novas abordagens à música. No final da década de 90, a própria R&S Records, já com um nome firmado no panorama europeu, foi perdendo a pedalada, permitindo que novas editoras – gente nova, ideias novas – estimulassem novos e velhos produtores. O misterioso desaparecimento acabou por se dar no início desta década. Sabe-se hoje pelas palavras do próprio Renaat que o interregno foi propositado, tendo servido para um sabático “carregar baterias”. Em 2006, anos volvidos sobre um silêncio misterioso, a R&S voltou a dar sinais de vida.
Com o renascimento do cavalo – desde sempre o símbolo de marca da editora –, e numa primeira fase da segunda vida, a estratégia de lenta reactivação passou pela recuperação de nomes essenciais do seu catálogo. A colectânea In Order To Dance serviu precisamente como marco balizador, apresentando nomes fluentes do seu passado remisturado por nomes influentes do presente. Lentamente a R&S recuperou o velho espírito, estando neste preciso momento a explorar uma renovada determinação, atraindo para a sua casa o melhor que por aí se revela. Entre novos e velhos, as apostas foram passando, por exemplo, por Radio Slave – de Matt Edwards – que editou em 2008 o EP Eyes Wide Open/ Incógnito –, tendo se seguido The Chain, Psycatron e os Shlomi Aber.
A aposta em novos nomes tem manifestado bem sensata e inteligente. Apesar da R&S ainda não ter editado qualquer disco – nesta sua segunda vida – num formato longo que confirme em definitivo a nova estratégia, os EP’s de jovens talentos têm se destacado o suficiente, não parando de surgir com saudável regularidade. Na linha da frente estão dois jovens talentos ligados ao dubstep/ UK garage: James Blake e Pariah. Os recentes EPs, editados nestes últimos meses, não passaram despercebidos. Tanto CMKY e Klavierwerke (de Blake) e Safehouse (de Pariah) estão entre os mais estimulantes discos deste ano, apesar do pequeno formato. Mas as novidades não se resumem a estes dois. Até os veteranos Model 500 editaram recentemente um novo trabalho intitulado OFI/ Huesca, provando que existe, ainda hoje, um genuíno reconhecimento das virtudes da editora. Mas ainda este ano estão agendadas outras edições como de Space Dimension Controller e de Untold. Tudo junto poderá não parecer muito, mas provas evidentes que num pequeno escritório em Ghent existem indícios suficientes de vida para nos deixar curiosos para o futuro, disso parece não haver muitas dúvidas. Que o novo ciclo se perpetue.