© Teresa Ribeiro
Tantos anos. Foda-se. Os anos 2000 estão quase no fim. São dez anos, por amor de qualquer coisa. Porra. Tanto tempo. O que é que estavas a fazer nos anos 2000? O que é que estavas a ouvir? Nós lembramo-nos disto. Há muito mais, claro, e muito bom – porque a maior estupidez do mundo é achar que já não se faz música como dantes, quando era bom. Sim, já houve quem se tenha antecipado para esta tarefa - a inevitável Pitchforkmedia. Não, não tivemos a ideia de fazer esta depois de eles terem feito. Somos é preguiçosos e demorámos tempo a juntar os votos e os textos. E se tivéssemos tido? Não é como se compilar os nossos singles favoritos de uma década na recta final dela fosse propriamente uma ideia genial ou rebuscada. Não é. Especialmente numa década em que o single voltou a ser rei, culpa de algo chamado "mp3". E do fim do álbum, e o caraças. Como sempre, foi isto que nos bateu colectivamente, mais ou menos. Pelo menos era o que tínhamos em comum nas nossas listas. Não é uma lista definitiva, nem muito completa. Mas é a possível, tendo em conta a dolorosa dificuldade de se fazer uma lista que reúne as canções que abalaram o nosso mundo na década de 00.
!!! Me and Giuliani Down By the Schoolyard
São mais de nove minutos de pura energia e emoção. Um abalo de proporções consideráveis. Com estes nove minutos os !!! provaram que eram uma das melhores coisinhas saídas da tal armada recuperadora do pós-punk que grassou pela década fora. Estávamos em 2003 e “Me and Giuliani Down by the School Yard (A True Story)” foi uma pequena bomba para alguns; e uma bomba gigantesca para outros, que mais tarde veriam em Louden Up Now a solução para todas as suas preces, um comprimido punk/funk/disco capaz de fazer tremer as pernas a todo e qualquer ser vivo. Sabe a adolescência queimada e sabe ao primeiro beijo; e sabe bem. Nic Offer é um anfitrião como poucos, supervisionando o bando com a mestria dos melhores MCs. “Me and Giuliani Down by the School Yard (A True Story)” é uma soma de muitas partes, cada uma mais excitante que a outra, espécie de tornado que não queremos que acabe nunca. André Gomes
Air Playground Love
Quando se soube que o duo francês Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel preparava a banda sonora do filme As Virgens Suicidas de Sofia Coppola, as atenções voltaram a recair sobe ambos. E não era para estranhar, depois do excelente Moon Safari (1998), os Air pareciam ser o nome indicado para qualquer banda sonora onde o amor fosse volvido e revolvido ou mesmo ocasionalmente defraudado. "Playground Love" é, ainda hoje, uma síntese do amor no seu melhor e do espaço que ocupa quando a devoção por outra pessoa é insuperável. Música apaixonada de recorte pop simples que num tom melancólico repleto de candura, seduz, encanta e suborna num único e eficiente round. Os ingredientes que compõem a canção de amor perfeita estão lá todos, disponíveis á inocência sentimental que ainda há no interior de cada um de nós. Mesmo para os misantropos que se acham imunes a estas coisas do coração. Divinal! Rafael Santos
Amerie 1 Thing
Mesmo que se tenha eclipsado gradualmente para dar lugar a nomes como Pollow Da Don ou Tricky Stewart, Rich Harrison vai ficar para a história enquanto arquitecto das duas malhas de r’n’b que mesmo os habituais detratores admitem gostar. Para acabar de vez com a terminantemente irritante expressão Guilty Pleasure. “Crazy In Love” tambem anda algures por esta lista, mas foi em Amerie que Rich encontrou a sua verdadeira diva. Construída em torno do break de bateria de “Oh Calcutta!” dos Meters, “1 Thing” assemelha-se mais a uma jam do que uma canção de pleno direito. Sem uma linha melódica verdadeiramente expressiva (remetida a chicotadas de guitarra e um sintetizador lá para um final), deixa-se planar na sua própria propulsão para que a elasticidade vocal da Amerie a leve pelos mais diversos caminhos. No fundo, aquela Canção que não tem qualquer necessidade de o ser para atingir o brilhantismo. Bruno Silva
Animal Collective Grass
O lema de Feels é igual ao dos Moscãoteiros (animais, afinal):”Um por todos e todos por um”. E sobram poucas dúvidas relativamente ao facto de Avey Tare ser o “um” no caso de Feels: ele é o pulmão, o impressionante contorcionista melódico, o principal instigador das sensações sugeridas nas letras, tal como no título das músicas (“See”, “Flesh”, “Purple”). Assumindo de vez a vontade de ser single (depois dos menos ortodoxos “Leaf House” e “Who Could Win a Rabbit?”), “Grass” alia as qualidades de “todos” por “um”: lá está a guitarra de Deakin, que se desintegra em luz, e o excelente piano-complementar de Kría Brekkan (companheira de Avey Tare). Apetece fumá-la. Além disso, “Grass” introduz uma estranha aproximação aos Nirvana (depois desenvolvida em “Reverend Green” e escancarada nas versões obscuras de “Polly” e “On A Plain”). Quem não acredita, pode tentar isolar a vocalização de We do the dance upon the plain (soa muitas vezes a um torturado Thank you for the pain) ou os berros repetidos no fim do refrão eufórico. Está lá tudo. Miguel Arsénio
Animal Collective My Girls
Sem os ouvir (gostando ou não) não é possível compreender o que foi a feliz promiscuidade entre o underground mais explorador e a pop. Os Animal Collective, os Black Dice e os Gang Gang Dance foram alguns dos agentes dessa tendência, mas o maior destaque foi para os primeiros, hoje transformados em ídolos de uma fatia importante da população indie. "My Girls", que surge no último ano da década em jeito de cereja em cima do bolo, acaba por selar este casamento. É um cruzamento que diríamos impossível: a hipnose da house (a frase de sintetizador é uma clara citação do clássico house “Your Love”, de Frankie Knuckles), as estruturas cíclicas do minimalismo (imaginamos um Terry Riley surpreendentemente rítmico naqueles sintetizadores a borbulhar – ou então um qualquer comprimido efervescente que resulte em euforia interminável), as lições de canto e harmonia dos Beach Boys, a pop descarada do refrão. Nunca os Animal Collective foram tão abertamente acessíveis, mas, ao mesmo tempo, continuamos a estar perante música radicalmente experimental, única. Pedro Rios
Arcade Fire Neighborhood #1 (Tunnels)
Os primeiros segundos movidos a piano e violino relembram Pulp do início, era Freaks. Depois embarcamos numa epopeia a la Pixies com o baixo e a guitarra a tomarem conta das nossas auto-estradas da coluna ao cérebro. E num arrepio relembramos Talking Heads até explodir de vez, lá para o meio, movidos pela bateria e pela voz quase Jarvisiana de Win Butler num mar de lamentações a roçar a boa histeria. E depois o grand finale com "uh-uh-uh" para se dançar até ao infinito. Tão brilhante que ofusca. Uma espécie de celebração religiosa de grandes influências musicais mas de reverente originalidade. Se calhar é por isso que damos graças a Deus por ter estas duas orelhinhas com ouvidos lá dentro para poder ter tamanho prazer e alívio. Como depois de uma confissão, "sim senhor Padre, eu ouvi isso tudo". A primeira canção do igualmente brilhante primeiro álbum dos verdadeiros pontas-de-lança da fértil cena indie canadiana (sorry Wolf Parade), será certamente um dos hinos desta década. Se não concordam com este humilde anónimo, perguntem ao fã David Bowie. Nuno Leal
Battles Atlas
Animal Collective com The Residents possuídos por um grupo de chipmunks. Eis o single que precedeu com estrondo o lançamento do enorme Mirrored. Uma música que destoa algo do resto do álbum, sobretudo pela simplicidade vs. as rítmicas bem mais complexas, King Crimsonicas de outras canções. Esta vive de uma batida que se cola ao ouvido, ultra-dançável, tribalíssima, daquelas que nos põem facilmente aos saltinhos. É um já pós-pós-rock que nos entra pelo cérebro deliciosamente ao som da estranheza de "singer is a crook, whoa, ey, oh". Fruto do talento de músicos calejados, vindos de paragens como Helmet, Tomahawk, Lynx ou Don Caballero. Sabem bem o que fazem e têm jeito para as continhas psíquicas do mais profundo rock matemático, rumo à fórmula inovadora, rock que consegue animar uma tenda no Boom Festival. Não é que isso tenha acontecido, mas experimentem saltar de Hux Flux para esta Atlas e vão ver que funciona! Aliás, volto a frisar, é impossível não castigar o chão com os pés a pisar uvas guiados por este trance-rock. É caso para dizer, lá acertou a Warp Records mais uma vez. Nuno Leal
Beyoncé ft. Jay Z Crazy in Love
Arquétipo daquela música que todos (repito: todos) adoram mais ou menos secretamente, "Crazy in Love" foi a confirmação mais do que óbvia de todo o potencial de estrela evidenciado anteriormente enquanto elemento das Destiny`s Child. Assente na secção de sopros mais entusiasmante de que há memória, "Crazy in Love" passa desse 4/4 em jeito de refrão para as batidas escorregadias e de volta sem perder o enfoque de uma verdadeira canção brute force, cujo apelo à dança se mostrou irresístivel. Mesmo que não tenha sido propositadamente dirigida a Jay Z, acabou também por ser marca indelével de um dos casais mais mediáticos e adorados desta década. Este último ainda aparece, mesmo antes do grande crescendo emocional (aqueles momentos que, em essência, tornam uma canção maior do que a vida), como que a justificar toda essa “loucura”, mas tanto o Hov como o resto do mundo sabiam estar apenas a preparar terreno para que Beyoncé Knowles se viesse a confirmar como a maior diva deste século. Bruno Silva
Björk Pagan Poetry
Na transição de década, Björk venceu Madonna por k.o. na luta pelo título de melhor gestora de recursos. Recuperar os ABBA e dançar numa licra incrível não foram suficientes para que Madonna preenchesse as expectativas formadas por excelentes esforços de colaboração como Bedtime Stories e Ray of Light. No lado mais sofisticado da fronteira, Björk lançou-se na década atraindo talento com talento e “Pagan Poetry” pode bem ser o expoente máximo dessa estratégia: num cenário de evidente atrito sexual, a harpa cristalizada de Zeena Parkins contrasta e debate-se heroicamente com a linha de baixo e temperamento desequilibrado da voz de Björk. Ficava assim de pé um imponente upgrade de “All Neon Like” (que surgia na mesma posição nº 5 do anterior Homogenic) e uma provável sublimação da penetração (sustentada pelo teledisco) pronta a ser analisada à luz de Freud. Miguel Arsénio
Black Dice Cone Toaster
Depois de assinarem uma das obras mais essenciais desta década com Beaches & Canyons, a imprevisiblidade dos caminhos desbravados pelos Black Dice, iria sofrer inevitavelmente com as comparações futuras. “Cone Toaster” nem tem qualquer motivo para sentir vergonha. Peça anómala no mosaico do então quarteto de Brooklyn, “Cone Toaster” parece surgir quase como uma encomenda de James Murphy à banda para produzir algo mais próximos da estética dançável da sua DFA. Depois da interessante violência No Wave e da magnânima reestruturação New Age, “Cone Toaster” veio dar todo um novo significado ao emergente termo Electroclash. Electro pelo uso da electrónica mutante que viria a constituir o modus operandi transviado da banda, clash pela fricção constante entre a batida 4/4 e demais parafernália fractal. Embrenhando-se por um groove colossal que deita por terra todas as ambições de tantos hipsters de NY de criar algo exigente para o cérebro sem que o corpo ceda ao torpor. Ou aquela tensão constante entre hedonismo e alienação. Bruno Silva
© Teresa Ribeiro
Blur Out of Time
Se a saída do guitarrista Graham Coxon era o sacrifício necessário para que os Blur atingissem o estado de graça que singularizou Think Tank, nas suas romarias étnicas e electrónicas, tal ruptura sucedeu-se então com o timing ideal. Com 13, os Blur davam por concluídos todos os objectivos possíveis no campeonato brit-pop. Na sequência disso, Think Tank é um disco de “desampara-me a loja, pois estou de partida para um novo despertar no norte de África”. E o mérito desse êxodo encontra-se em toda a parte de “Out of Time”: no arranjo sinfónico (a cargo do Grupo Regional de Marrakech) e na desbunda de deserto mantida pelos próprios Blur. “Out of Time” representa, no trajecto dos Blur, o single que deixa cair a pele brit-pop para revelar uma outra apta a usufruir de novos horizontes musicais (desde aí multiplicados por Damon Albarn). Livres de perseguirem os riffs enérgicos de Graham Coxon, os Blur pacificaram a canção até ao ponto de “Out of Time” parecer gaze para a alma. Miguel Arsénio
Buraka Som Sistema Sound of Kuduro
Momento máximo da mais excitante banda portuguesa neste momento, "Sound Of Kuduro" é também aquele que melhor capta a estética de um grupo com pontos de contacto com as movimentações que gente como M.I.A. (que participa no tema), Diplo e Switch têm vindo a operar. Falamos de música feita por ocidentais interessados em apropriar-se das fervilhantes cenas locais de vários pontos do mundo (o kuduro, o baile funk, a soca, por exemplo) para criar música urbana filha do hip-hop, que trata os géneros como plasticina, num saudável desrespeito pelo instituído, o bom gosto (construção artificial mais aborrecida do mundo, felizmente a cair em desuso num cenário musical mais dado a confusões, trocas e misturas). "Sound of Kuduro" tem a hiperactividade dos retorcidos ritmos do kuduro, uma M.I.A. autoritária no refrão e um imparável Puto Prata. Ingredientes mais do que suficientes para elevar os Buraka Som Sistema a sensação internacional. Pedro Rios
Buraka Som Sistema Yah!
E tudo começa nas cadências vigorosas do kuduro em colisão com as linguagens do techno. Tudo descamba fatalemente em direcção à pista de dança e aos corpos avidos por prazer físico. É ritmo puro, cru e nu produzido por gente que nada mais almeja que a evasão através de uma música festiva - sim, essencialmente festiva! -, inventiva, informal e, acima de tudo, transversal. Sim porque África ferve-lhes no sangue como se procurassem a centelha primordial e Lisboa sente-se pela universalidade como abraça as novas tendências da música electrónica. É uma das mais honestas inovações dos espiritos africanos por parte de uma geração que encontrou na irregular e atrevida programação um novo paradigma sonoro. Música híbrida, firme, progressiva que hipnotiza quem se deixa levar pela singular sonoridade de um colectivo que com "Yah!" se deu a conhecer a um mundo que os acolheu como seus. Assim começou o fenómeno Buraka Som Sistema. Da Buraca para mundo: Yah!
Rafael Santos
Burial Distant Lights
Hoje é um dos mais aclamados estetas do dubstep e uma figura proeminente e essencial do underground londrino, mas quando o ep Distant Lights foi editado em 2006, William Bevan – verdadeiro nome do misterioso vulto – era um solitário desconhecido em busca da verdade interior num mundo pré-apocaliptico. Sem grande consciência da singularidade da sua música e do impacto que acabou por ter - mesmo fora do círculo dubstep -, Burial (a par de Kode 9) é um nome incontornável na segunda metade de uma década que, que no que à música electrónica diz respeito, pouco primou pela verdadeira inventividade. Nesse aspecto, "Distant Lights" é um extraordinário apontamento sonoro, exemplificando a terceiros os mecanismos elementares aptos a despertar a atenção do melómano, criando, quase em simultâneo, um culto capaz de idolatrar quem até há bem pouco tempo se recusava dar a cara com receio do "vedetismo". Rafael Santos
Devendra Banhart A Sight to Behold
O single de um herói. A figura por trás de uma das melhores coisas que aconteceram neste jovem século – o renascer da folk americana, na sua vertente mais freak e psicadélica, livre de clichés world “trade” music. O herói da badalada “New Weird America” que me revelou um dos melhores segredos que já me contaram – que existe alguém como Vashti Bunyan. Além de ter namorado a Natalie Portman. Mas de volta a “A Sight to Behold”, eis um instantâneo clássico folk eterno. Canção armada até aos dentes numa ponte entre a viola dedilhada de Devendra, com as cordas de uma orquestra de abismo e uma letra desencantada que encontra abrigo sob a alçada de Michael Gira e da sua editora, de onde este single saiu. É como se Gira, o velhinho deus masoquista maltratado renascesse noutra voz, noutro corpo, encarnado em Devendra. Por fim, o patinho feio cabecilha dos magníficos Swans encontrou em Devendra o tal jovem deus como reza o nome da sua editora Young God. Nuno Leal
Dizzee Rascal Fix Up, Look Sharp
Embora não seja a sua faixa mais contundente no encapsular das coordenadas grime, no que este tem de mais vital, “Fix Up, Look Sharp” constitui a primeira investida do rapaz do canto em desvios rasteiros ao género. Em retrospectiva, a maior acessibilidade de “Fix Up, Look Sharp” por comparação com as batidas gélidas e cascatas de sintetizadores de Boy In the Corner, mostrava já que os limites para Dizzee não se ficavam pelo emular angustiante do lifestyle londrino. Pavimentando o caminho para algo como "Dream" ou "Pussyhole". É precisamente esta abertura de espírito que mais facilmente se retém, quando de encontro à percussão pesada e discurso serpentilíneo do puto maravilha, “Fix Up, Look Sharp” se torna o single de maior sucesso do seu álbum de estreia. Levaria ainda algum tempo a ser tão bem sucedido comercialmente, mas, mesmo mantendo todas as suas qualidades como mc, nunca “Dance Wiv Me” ou “Bonkers” passariam de malhas inúteis quando comparadas com o groove old school que exala de “Fix Up, Look Sharp”. Bruno Silva
Gnarls Barkley Crazy
Foi o fenómeno de 2006, a música repetida até à exaustão. A voz do “bucha” Cee-Lo Green juntava-se ao tapete sonoro criado pelo “estica” Danger Mouse. Nessa altura Mouse já se tinha feito notar com o excelente The Grey Album (mashup do White Album dos Beatles com o The Black Album de Jay-Z) e a expectativa quanto a este projecto era grande. “Crazy” foi uma bomba: alcançou um airplay gigantesco, foi a música que passou em todo o lado, de bares a supermercados. O excessivo airplay acabou por funcionar contra a canção: o desgate terá transformado um single quase perfeito num objecto absolutamente irritante, podendo ainda hoje ser escutado em toques polifónicos. Apesar do seu tempo de vida ter sido limitado (ou melhor, encurtado por circunstâncias externas aos criadores), uma lista dos melhores singles não podia deixar de fora uma das canções mais eficazes e marcantes da última década. Nuno Catarino
Hot chip Ready for the floor
Piada tão fácil e tão estúpida que é inevitável fazê-la: preparou toda a gente para a pista. Toda. A transversalidade de "Ready for the Floor" é também impressionante, quer se fosse pouco atento à música pop da altura ou não. É muito estranho pensar que o single saiu em Janeiro de 2008, porque parece ter feito parte das nossas vidas desde sempre. É daquelas canções que pedem um singalong e abraçar amigos enquanto se finge com os lábios que se está a cantar "you're my number one guy" (atenção, homofóbicos, a frase foi originalmente dita por Jack Nicholson a fazer de Joker no Batman, por isso não devem ter medo). A (óptima) remistura dos Soulwax tornou-a ainda mais pronta para a pista, mas isso não era de todo necessário, eram nerds a tomar conta da pista de dança sem qualquer medo da pop e de levar uma canção pop simples para sítios inesperados. Rodrigo Nogueira
Jamie Lidell Multiply
A coisa andava fora de moda, mas Jamie Lidell não se preocupou muito com isso. Repescou a soul directamente do baú dos 70s e criou um dos mais apetitosos discos dos 00s. A cereja no topo do bolo era o tema homónimo, “Multiply”, com direito a single e a uma merecida exposição massificada. Apesar da estrutura simples, é uma canção de contornos clássicos, aveludada, com o ritmo funk a puxar pelos músculos de todos aqueles que ouvem a canção. Estávamos em 2005 e os putos descobriam através de um inglês branco de ar “geek” que afinal havia música perfeita para dançar e engatar miúdas. Entretanto haveriam de surgir na cena internacional figuras como Sharon Jones e até mesmo Lee Fields, justificadamente “the real deal”. Mas, para um branquelas, Lidell até não se safou nada mal, tendo sido o responsável por um anormal crescimento da taxa de natalidade nos países da OCDE no ano de 2006. Nuno Catarino
Jay-Z 99 Problems
Só Rick Rubin é que podia ter feito isto. Em plenos anos 2000, voltar ao rap, produzir uma canção que soa a quase todas as suas produções dos anos 80 só que ainda mais violenta e rock, e partir a década ao meio. Especialmente a de Jay-Z, numa década com tantas e tão boas malhas (de "Big Pimpin'" a "Roc Boys", passando por "I Just Wanna Love U (Give it 2 Me)", "D.O.A." e quase todo o Blueprint). Mas se há algo que um guru místico de barba pode fazer é isto e fê-lo com "99 Problems". A origem do sample não é nada inovadora no rap, é "Big Beat" do Billy Squier, gente como Run DMC e Dizzee Rascal usaram (e muito bem) a batida, é a maneira como a corta que torna tudo especial. É uma canção rock ,mas uma canção rock muito diferente de "Big Beat". Versa sobre os tempos de Jigga como dealer de crack, rouba o refrão ao Ice-T, uma estrofe inteira ao Bun B dos UGK, e tem o Vincent Gallo no vídeo. É preciso pedir mais? Rodrigo Nogueira
© Teresa Ribeiro
Jens Lekman Maple Leaves
Parte esmagadora das músicas de Jens Lekman procuram resolver um bloqueio com a intervenção de um sample majestoso, que repõe justiça no resultado e salva o dia do encalhado. Muitas vezes, um refrão de Jens Lekman é o empurrão que falta para que dois trapalhões acertem sintonias num beijo estupidamente bonito (parecido com aquele que une o polícia e a drogada em Magnólia). “Maple Leaves” é glorioso e apaixonante como uma reviravolta no marcador que deixa uma equipa sueca à frente de uma espanhola ou italiana (países sem a variedade de jovens talentos da Suécia). O rapaz perde-se em lamentos sobre mal-entendidos, mas a canção encontra-se na repetição de um arranjo de cordas que faz “pandam” com um break de bateria capaz de medir forças com o de “1 Thing” , da bombástica Amerie (também representada nesta lista). Ou seja, a Liga dos Campeões não seria a mesma coisa sem o hino que a acompanha, da mesma forma que Jens Lekman não apadrinharia beijos desajeitados sem estes pedaços de sinfonia. Miguel Arsénio
Jimmy Eat World A Praise Chorus
A urgência de “A Praise Chorus” não tolera quem passa o tempo com as mãos nos bolsos. Apesar de destinado a dividir louros com os igualmente irresistíveis “The Middle” e “Sweetness”, “A Praise Chorus” é o single que melhor traduz a fórmula que infiltrou Bleed American (intitulado Jimmy Eat World após o 11 de Setembro) entre os melhores discos de 2001. A anos de luz do pelotão emo, os Jimmy Eat World sabiam (depois esqueceram) como conjugar camaradagem choninhas e uma sensibilidade pop que trata a mouche por tu. “A Praise Chorus” desafia as probabilidades dos solitários e coloca a carne toda no assadouro de um refrão que cola as palavras de sete músicas diferentes (a Wikipédia ajuda a identificá-las). Nem Girl Talk seria capaz de tal combinação. É a super-música de motivação para os encalhados da década. Miguel Arsénio
Joanna Newsom Sprout and the Bean
Apareceu quase como num sonho, entre fadas, elfos e duendes, com uma harpa entre mãos e uma voz que lembra aquela prima de seis anos a ensaiar para a aula de canto coral dos sábados de manhã. Mas é real. E dividiu opiniões como poucos. Há quem jure que é a forma mais directa de entrada no céu; outros, que é um passe para o inferno. Mas “Sprout and the Bean” é nada mais nada menos que uma delícia, de sensibilidades folk. Vinda dos Apalaches, apareceu logo ali depois da explosão do freak folk e quase era engolida por este mas The Milk-Eyed Mender provou ser tão mais do que isso – e sobreviveu, felizmente. “Sprout and the Bean” quis dar a cara por um disco de pulmões cheios, de brincadeiras pueris e memórias de episódios que gostávamos que tivessem acontecido nas nossas vidas. “Sprout and the Bean” é uma segunda oportunidade para se recriar uma infância dourada, mesmo que ficcionada, mesmo que impossível. André Gomes
Justice D.A.N.C.E.
Os enigmáticos franceses Justice (Xavier de Rosnay e Gespard Auge) fazem parte de uma geração que cresceu a idolatrar os Daft Punk. E nunca o negaram. Depois de se terem deixado levar pelo revivalismo nu-wave e punk-rock que caracterizou a música no meio desta década, desenvolveram uma sólida base de trabalho, reunindo as diversas sinergias do rock, da pop e da electrónica numa competente argamassa sonora que nunca tiveram receio de atirar à parede para ver se colava. "D.A.N.C.E." representa bem essa descomprometida agilidade em pegar nas coordenadas do french touch - nomeadamente na particularidade como o house soube imiscuir-se e enamorar-se pelo funk e o disco-sound - deixados como legado, juntando-lhes novas pulsações sonoras, enquanto um inesquecível coro pop nos relembra o quão essencial é nos soltarmos na pista de dança e nos deixarmos levar ao sabor do puro e personificado hedonismo. Como tal, "D.A.N.C.E." é um momento incapaz de nos deprimir, mesmo nos dias em que nos sentimos dispostos a tal. Rafael Santos
Justin Timberlake My Love
Future Sex/Love Sounds, o segundo álbum a solo do ex-'N Sync (tempos obscuros que parecem hoje uma impossibilidade face ao que Justin Timberlake fez depois) teve sete singles, um feito raro nos dias que correm, mas totalmente justificável, tal a qualidade global do disco (outra coisa rara, sobretudo no cenário pop e r&b). Timbaland, produtor que deteve durante algum tempo o toque de Midas, descreveu My Love, o segundo single do disco, como uma "balada rock-tecno". Não sabemos bem o que isso é, mas sabemos que a introdução com percussão e batidas entrelaçadas, os sintetizadores vaporosos, o beat pára-arranca (Timbaland no seu melhor) e a voz esplendorosamente pop de Justin Timberlake fazem de "My Love" um dos mais gloriosos momentos de 2006. E dos últimos anos. Pedro Rios
Kode 9 & Spaceape 9 Samurai
É um dos temas com que se deu a conhecer quando o dubstep ficou na moda. Mais um nome sonante num género marcante que soube colocar-se no patamar seguinte distinguindo-se da fórmula standard que ameaçava parasitar os mais sofisticados laboratórios subterrâneos. "9 Samurai" funciona como uma banda-sonora de um transe tribal urbano de sub-baixos acutilantes e cadências vagarosas e melancólicas. Um som soturno e claustrofóbico, algures entre o presente e o futuro, que não nega os ensinamentos do melhor dub da Jamaica, recuperando, sem consternações, as coordenadas deixadas pelos magmáticos Massive Attack, oxigenando-as com uma estética própria onde o negrume frio e alienígena se impõem como determinantes. E inspiração não lhe faltou para erguer um monumento à modernidade da música. Rafael Santos
LCD Soundsystem All My Friends
Começou por ser apenas uma das mais atípicas canções saídas do catálogo LCD Soundsystem, mas com o tempo foi-se consagrando como uma das músicas mais universais e consensuais do século XXI. O piano intensamente repetido vai subindo num crescendo que parece nunca acabar, o ritmo intensifica-se e James Murphy canta com sabor a nostalgia, até desembocar naquele verso final que nos deixa com pele de galinha, “where are your friends tonight?” passa repetido vezes sem conta dentro da nossa cabeça, vai enroscado em espiral até virar eco infinito. O segundo single de Sound of Silver teve direito a versões de Franz Ferdinand e John Cale e transformou-se num improvável hino. Sobre o passar do tempo, sobre olhar para trás, “All My Friends” é um épico pop, quase amargo, é uma imensa convulsão emocional, catarse sonora condensada em cerca de seis minutos de tensão absoluta. Nuno Catarino
LCD Soundsystem Losing My Edge
I was there é a frase mais escutada neste tema originalemente editado em 2002. É tudo treta, mas com um pingo de imaginação tudo é tolerável. Ele esteve lá - em espírito certamente - quando os Can se deram a conhecer em Berlim em 1968. Esteve lá quando Captain Beefheart formou a primeira banda. Esteve lá quando os grandes sound clashes varreram a Jamaica. Esteve com com Lerry Levan na mesma cabine de DJ no Paradise Garage. E foi dos primeiros a dar a conhecer os Daft Punk aos putos do rock. E a discografia (nada improvavel) do homem? De Pere Ubu, The Trojans, The Black Dice, Section 25 aos Human League, The Normal, Lou Reed, Scott Walker, Monks, Joy Division, Sun Ra, entre outros pesos pesados. Assim se apresentou ao mundo, este homem de falsa modestia que não se gosta de ver ao espelho (apesar do seu aspecto cool) e que acha que os outros têm melhores ideias que ele. Mas a julgar por este exemplar momento de “rocalhada” para quem não gosta de rock, James Murphy veio ao mundo com o seu LCD Soundsystem no momento certo. E sim, com ideias válidas e assertivas (como depois o seu álbum de estreia acabou por confirmar). "Losing My Edge" é parte essencial da intensidade de um homem que gostaria de ter estado em todos os momentos cruciais da história da música moderna. Não esteve, mas deu para enganar alguns ingénuos. Rafael Santos
Lil' Wayne A Milli
Será do beat do Bangladesh? De samplar e desacelerar a voz do Phife Dawg numa remistura obscuríssima do "Left My Wallet in El Segundo" dos A Tribe Called Quest até fazer com que parecesse dizer "a milli, a milli" durante uma canção inteira? Da batida propriamente dita? Ou será da voz mutante de Lil Wayne? Da letra que parece ser improvisada ou, no mínimo, fruto de uma mente alterada por estupefacientes? Da forma como estica o "a" quando diz "Gwen Stefani"? Não é de nada disso. É de tudo. Houve para aí mil freestyles por cima deste beat e nenhum se aproximou disto. O Swizz Beatz tentou replicar o sucesso dito no Blueprint 3 do Jay-Z, a pegar num bocado da "D.A.N.C.E." dos Justice e a cortá-la para soar assim, mas não chegou nem perto (li no outro dia que ele teve de vender a mansão dele não sei onde, a vida não lhe anda a correr muito bem apesar de se deitar todos os dias ao lado da Alicia Keys). Porque "A Milli" é única, brilhante, estranha, completamente inesperada, mutante, alienígena, drogada, genial, brutal, nojenta, tudo se lhe aplica. "A Milli" é tudo. Rodrigo Nogueira
Lily Allen LDN
Menina terrível da pop, entrou por aí dentro sem aviso, sem apelo nem agravo, mas com a força toda. De talentos vários (são públicos os seus dotes orais, entre outros), Lily Allen assinou em Alright, Still um belíssimo disco que teve em “LDN” um dos seus pontos altos. Tal como a própria diz na introdução ao videoclipe que serve a canção, gravado na Rough Trade em Londres, o que ela quer é algo entre o grime, new wave, dub, punk, drum ‘n’ bass, broken beat, soul e, dizemos nós, reggae. E “LDN” é um mash up de boa parte desses géneros e soa verdadeiramente fresco e livre, deliciosamente melódico ao deixar-se guiar por sopros e uma batida irrecusável. Impossível passar despercebida. Graças a esta e outras canções, Lily Allen fez do mainstream desta década um local mais divertido e interessante para se viver. E, se tudo correr bem, tratará certamente de repetir a dose na década que está para chegar. André Gomes
© Teresa Ribeiro
M.I.A. Boyz
Kala, o magnífico álbum de M.I.A. editado em 2007, elevou o produtor Switch a uma posição de destaque na cena electrónica internacional – está agora de regresso à ribalta com os alucinados Major Lazer, parceria com Diplo, produtor com características comparáveis e que também trabalhou com M.I.A.. "Boyz", um dos vários singles memoráveis de Kala, pega em várias músicas de dança de diversas latitudes, como a gaana e a soca, à luz do hip-hop e da canção pop. A voz travessa de M.I.A., embaixadora desta tendência global, que inclui os nossos Buraka Som Sistema, faz o resto. O que sai desse golpe de génio é um elogio à festa, um doce pop e a maravilhosa síntese que fez de Kala um dos discos mais idiossincráticos da década. Pedro Rios
M.I.A. Paper Planes
Entre Londres e o Sri Lanka, M.I.A. antecipou a alter-modernidade de Nicolas Bourriaud. Pela criativa fusão de géneros, por essa eliminação de fronteiras, pela junção de sons “do mundo” com electrónica das pistas de dança ocidentais, pela mistura do seu “hip hop criativo”, Mathangi Arulpragasam poderá ser facilmente enquadrada nessa visão do mundo que vê no caos do mundo contemporâneo uma oportunidade para a criação original. O terceiro single de Kala - produzido pelas mãozinhas sábias de Diplo e Switch - rebentou a uma escala global, sendo ainda exponenciado pelas imagens do filme Slumdog Millionaire, o “underdog” vencedor dos Óscares 2009. A canção é pura M.I.A. (primeiro verso: “I fly like paper, get high like planes”), a base rítmica é emprestada pelos Clash (sample de "Straight to Hell") e o refrão, feito de disparos e sons de caixas registadoras, é irresistivelmente viciante. Faixa obrigatória, na sua originalidade e excesso. Nuno Catarino
MGMT Time to Pretend
Os The Management conseguiram uma melodia tão contagiante como a Gripe A. Daquelas que se revelam em segundos, na brincadeira inicial incrivelmente simples de um teclado que se tornou êxito instantâneo em qualquer pista de dança ou concerto, como aconteceu numa das melhores actuações do Optimus Alive de 2008. E se há músicas bem-sucedidas que não lembram nem ao diabo (infelizmente a maioria), outras há que merecem todo o sucesso que têm pelo mundo. "Time to pretend" é uma delas. E foi a custo, com uma nova roupagem, um pouco menos electro que a original de 2005. Em 2008 lá chegou à fama, na sua condição totalmente infecciosa, que alastra dos pés à cabeça com postura de hino geracional. Uma canção destes tempos, algo mainstream, electro e rock q.b., pop a la Flaming Lips, e sobretudo uma letra meio ingénua mas muito honesta. Sim, porque às vezes apetece cagar mesmo para isto tudo, fazer música, ganhar algum dinheiro, encontrar umas modelos para casar, ir para Paris, dar no cavalo e foder umas estrelas. Auto-destruir-nos religiosamente segundo o gospel "Live fast, die young" e fingir que está tudo bem. Nuno Leal
Missy Elliott Get Ur Freak On
Da mera utilização das tablas ao pára-arranca delas, "Get Ur Freak On" é basicamente um dos momentos mais gloriosos de Timbaland. Eram tempos mais simples, em que o rapaz ainda era gordo e estava ocupado a inventar o futuro (não o faz para aí desde quando, 2006?). E a Missy, uma diva se alguma vez houve uma diva de rap/r&b no mundo, em grande forma por cima. É a voz versátil e elástica dela, mais que as palavras – como tanto na vida – e a batida estranha e polirrítmica que serve a dança. Era o futuro e ainda é estranho oito anos dpeois. Aparece por aí de vez em quando, e a reacção é sempre a mesma na pista de dança. Já para não lembrar que Timbaland era praticamente intocável em 2000/2001, com canções como esta, "Try Again" da Aaliyah ou "Ugly" do Bubba Sparxxx. Da mera utilização das tablas ao pára-arranca delas, "Get Ur Freak On" é basicamente um dos momentos mais gloriosos de Timbaland. Eram tempos mais simples, em que o rapaz ainda era gordo e estava ocupado a inventar o futuro (não o faz para aí desde quando, 2006?). E a Missy, uma diva se alguma vez houve uma diva de rap/r&b no mundo, em grande forma por cima. É a voz versátil e elástica dela, mais que as palavras – como tanto na vida – e a batida estranha e polirrítmica que serve a dança. Era o futuro e ainda é estranho oito anos dpeois. Aparece por aí de vez em quando, e a reacção é sempre a mesma na pista de dança. Já para não lembrar que Timbaland era praticamente intocável em 2000/2001, com canções como esta, "Try Again" da Aaliyah ou "Ugly" do Bubba Sparxxx. Rodrigo Nogueira
Nelly Furtado Promiscuos Girl
Sabíamos que ela era como um pássaro; o que não fazíamos a mínima ideia é que esta ave sabia e podia voar desta maneira, soltar-se das suas amarras e fazer música pop que deixasse marcas. Das canções inofensivas e doces do Rock FM, passou para as canções lascivas e abençoadas por Timbaland e, por isso, absolutamente recomendadas para a pista de dança. Fez-se mulher e a sua música ganhou corpo. Não é caso único em Loose mas “Promiscuos Girl” é o que se destaca mais; o jogo de ancas de Nelly no videoclipe da canção é tirado a decalque das movimentações sensuais sugeridas e proporcionadas pela produção entusiasmante do maestro Timbaland; a voz da luso-canadiana é cereja em cima do bolo, o estimulante que podia faltar para levar “Promiscuos Girl” para o nível seguinte. Nelly Furtado pode nem fazer mais nada na sua vida mas já conseguiu aqui o seu momento de ouro. Afinal há só vantagens na promiscuidade. André Gomes
Outkast Hey Ya!
Uma vez um amigo, bêbedo, disse-me que "Hey Ya!" não era nada. "Isto não é nada. É sempre a mesma melodia, não muda nada, nem sequer é rap. Rap é ritmo e poesia. Isto não é nada disso." Errado, João, rap não vem de "rhythm and poetry", vem do verbo "to rap". E quando o Tom Jobim escreveu um samba de uma nota só em que só mudavam os acordes à volta? Onde é que estavas tu a dizer que aquilo não é nada? É, sem qualquer sombra de dúvida, uma das grandes canções pop dos anos 2000, especialmente pela sua transversalidade. Não há quase ninguém que não goste, tirando um ou dois amigos bêbedos. Ainda hoje parte qualquer pista de dança ao meio. Experimenta. "Shake it like a Polaroid picture?" Já não há Polaroids, mas a incitação à dança fica para sempre. Não é nostalgia, é ser brilhante. Rodrigo Nogueira
Panda Bear Bros
"Bros" representa anos de alento para o benfiquista desgraçado: o Porto podia até ter Lucho González e Lisandro López, mas o Benfica tinha Panda Bear. Lisboa foi, aliás, a cidade que assistiu ao crescimento de Person Pitch em tempo real e “Bros”, apesar da forte concorrência, é O single que melhor salienta as qualidades do álbum (e aquele que coincidiu com o seu lançamento). Maravilhado pelo alcance da música house e decidido a explorar o potencial da mixtape como fio condutor, Noah Lennox activa o “vai e vem” de motivos vários (entre o étnico e o festivo), sustendo depois a dança (e a colagem) com categórica utilização do eco e do delay. E o maior milagre de “Bros” é nunca parecer difícil ou excessivo durante os seus doze minutos e meio. Com uma visão desigual, Noah Lennox descobriu a ciência exacta para um hino de isolamento que parece abraçar o mundo inteiro. Miguel Arsénio
Panda Bear I'm Not
Porra, caia-me algo em cima se os segundos iniciais de "I’m Not" não são o pedaço musical mais bonito da década. Se não são, pelo menos andam lá perto. "I’m Not" é um dos mais brilhantes momentos do brilhante Person Pitch, obra-prima da aventura a solo de Noah Lennox dos Animal Collective. Faz-se de quê? Uma voz em loop, desligada da origem, transformada em drone, uma batida mínima, Lennox contido, a sussurrar, engolido pelo eco. Traz à memória o que há de mais líquido nas produções dub e as propriedades terapêuticas do som em repetição contínua, matéria em que Person Pitch é um autêntico tratado (é fascinante a forma como Noah Lennox emprega a técnica do sampling como um produtor de hip-hop num contexto onde ela habitualmente não entra desta forma). Seja nos Animal Collective, seja com Person Pitch, Lennox é uma das figuras fundamentais da música na década de 2000.Pedro Rios
Radiohead Pyramid Song
Ao dobrar o milénio, quase de rajada, os Radiohead editaram dois álbuns seminais para a década que agora corre para o final. Não precisamos de esperar dez anos para o perceber, foi claro logo ali naquele momento. A viragem sonora, corajosa, não podia ter merecido outro tratamento do que um grande aplauso, ainda que se tenham perdido alguns fãs pelo caminho. De Kid A não saíram singles, mas do irmão – não muito gémeo – saltou “Pyramid Song” para mostrar os seus atractivos de forma piramidal. “Pyramid Song” é uma canção no fio da navalha, perigosíssima – espécie de kit salva vidas que em caso de má utilização pode ser fatal. Ainda está para chegar um redemoinho de bateria tão perfeito como aquele que, aos dois minutos passados, abre a canção para encantos ainda maiores. É um crescendo; um imenso crescendo que acontece quase sem se perceber, colhendo beleza às mais pequenas minudências – escrever canções assim não é para todos. E quando chegam as cordas já o ar se tornou quase irrespirável. André Gomes
Sonic Youth Incinerate
Esta década não sobreviveria sem estas guitarras. Não senhor. Podem não ser tão vanguardistas como nos anos 80 mas soam igualmente essenciais, importantes para distinguir e apartar o trigo do joio e dizer não à banha da cobra – ela anda por aí. Depois do menos conseguido Sonic Nurse, “Incinerate” liderou Rather Ripped com valentia e conseguiu o merecido airplay nas rádios americanas e um lugar especial no coração para quem ainda gosta de guitarras em 2000. O último disco dos Sonic Youth a ser lançado com o selo Geffen Records não contou com Jim O'Rourke mas, segundo o próprio Thurston Moore, é feito de “super canções”. Percebemos o que quer dizer, porque os Sonic Youth desta década aprofundaram conhecimentos no que ao formato canção diz respeito embora nunca tenham deixado de parte as bases da sua fundação: o experimentalismo. E “Incinerate” é um excelente exemplo dos Sonic Youth que namoram a canção mais de perto sem esquecer o que os tornou seminais no passado. André Gomes
© Teresa Ribeiro
The Avalanches Since I left You
À primeira audição a voz feminina soava incrivelmente a uma Kylie Minogue em MDMA à beira da perfeição. Mas ao pensar um pouco, não podia ser a bela australiana Kylie. Não, apesar de já ter surpreendido o mundo com um dueto fantástico com Nick Cave, ou com a primeira grande electro-transformação de uma diva pop (primeiro que a Madonna), não. Nunca esteve à beira, ou muito menos, chegou à perfeição. Ainda zonzo pela magia pop misteriosa deste single vem a descoberta que a única coisa comum é o facto desta canção provir da mente engenhosa de um colectivo de DJs tão oceânico como a Kylie. Colectivo de ex-noise punkers de Melbourne que soube como ninguém partir do legado estético-sonoro de uns irrepreensíveis e até à data irrepetíveis Saint Etienne dos dois primeiros álbuns de 90's. E o que parecia irrepetível repetiu-se. A capacidade de uma mescla pop electrónica de conto de fadas se apoderar como droga recreacional do nosso corpo a transbordar de coração em avalanches de sorrisos para aqui e para ali. MDMA sintetizado em CD, vinil e mp3. A ciência de com samples sintetizar o “feelin' good, great and even better”, a “paradisology”, ou que lhe quiserem chamar. Nuno Leal
The Rapture House of Jealous Lovers
Marco do revivalismo pós-punk dançável de início deste século, os nova-iorquinos The Rapture entraram a matar em 2003 com este single. Uma espécie de "House of the rising son" para os jovens do século XXI, histéricos e nervosos até à medula, mexendo furiosamente as ancas ao som do baixo proeminente na linha de Gang of Four a tomar conta da panóplia de batucadas em fundo, muito revivalista de uns Liquid Liquid. Ainda para mais tudo acompanhado por uma guitarra também muito Fire Engines, James Chance and the Contortions ou Mission of Burma, estando estes últimos sem dúvida presentes em cada poro da canção. Revivalismo total, de qualidade, de coisas boas algo esquecidas no passado, tão à frente do seu tempo que agora soam melhor que nunca. Quando é assim, merece o o seu espaço. Pode não ser o cúmulo da originalidade, mas este single, saído na ultra-dançável DFA, promete e cumpre. Agora o que irrita é haver gente que acha que isto é a invenção da roda. Grupos como The Rapture e outros, devem servir como trampolim para novas descobertas e não para activismo "geek" bacoco. Os miúdos não podem ficar só com isto. Se gostam, vão lá investigar finais de 70's e 80's para ver o que é mesmo bom. Nuno Leal
T.I. What you Know
Foram vários os momentos pós-King em que o rapper de Atlanta tentou emular a confiança de “What You Know”, mas nunca T.I. conseguiu repetir a proeza sem resvalar para uma arrogância dispensavelmente banal (T.I. Vs T.I.P. é prova disso mesmo). Revelando uma destreza assinalável numa entrega apropriadamente semi-cantanda, o auto-intitulado “King Of The South”, leva “What You Know” por intricados jogos de palavras e um uso cativante do melodioso e pausado sotaque sulista, enquanto as cascatas de sintetizador o transportam para esse mesmo estatuto. Revisitando “Gone” dos Impressions, DJ Toomp assina uma das melhores produções vindas do Southern Rap, sem que esta alguma vez eclipse a prestação do T. I.. Pelo contrário, as batidas densas de “What You Know” parecem apenas servir os propósitos do rapper. Que aqui apontam baterias para o panteão. E raros são estes casos em que toda a grandeza de um artista consegue ser tão bem consensada numa “simples” canção. Bruno Silva
The Streets Has It Come To This?
Mesmo que inevitavelmente associado à euforia grime, intimamente por via da “Nite Nite” com o Kano ou remix para “Get Out My House“, e numa questão genealógica pela partilha de códigos 2 Step e UK Garage, nunca coube a Mike Skinner fazer o contraponto branquelas das temáticas violentas ou territoriais que faziam o grosso da produção negra de E3. “Has It Come To This” não só marcou um passo evolucionário no UK Garage (pense-se também na So Solid Crew), como trouxe a todos os geezers uma voz com a qual se identificavam. Tardes ociosas de torpor pedrado em frente à consola, circular pela cidade em busca das melhores drogas, ténis/sapatilhas, desinteresse generalizado, o Original Pirate Material. A Londres multicultural século XXI vista pelos olhos cínicos de uma classe média profundamente branca (que viria a ser posteriormente imagem de marca para tantos pós-adolescentes como Lily Allen), teve no prodigío deste rapaz de sotaque cerrado e língua afiada o seu primeiro grande messias. Até hoje ainda ninguém conseguiu repetir a façanha de modo tão brilhante como em “Has It Come To This?” Bruno Silva
The Strokes Hard to explain
É complicado admitir isto em público, mas "Hard to Explain", dos Strokes, ensinou-me a gostar da Christina Aguilera. Não foi bem a própria canção, foi o mash-up de Freelance Hellraiser que a misturava com "Genie in a Bottle." Chamava-se "A Stroke of Genius" e era basicamente isso Anos depois, já não há lá muito saco para mash-ups (estás a ler isto, Nuno Lopes?), mas ficam as canções e é melhor gozá-las independentes uma da outra. E "Hard to Explain" é uma grande canção, com todos os ingredientes que fazem dos Strokes imensamente melhores que todas as bandas pós-Strokes. Da bateria simples e constante à entrada das guitarras, do baixo sempre ao dobro do tempo, à voz distante de Julian Casablancas, está tudo lá menos o solo de guitarra. Foi o primeiro single do Is This It? e foi aqui que a loucura começou toda. Os problemas só vieram depois, quando eles tentaram fugir a isto com resultados variáveis.
Rodrigo Nogueira
The White Stripes Seven Nation Army
Transformada em cântico para várias claques, "Seven Nation Army" permanece como um dos bizarros singles de sucesso da década. Em plena euforia de regresso do rock’n’roll, os White Stripes, um duo impecavelmente vestido, com um vocalista (Jack White) óptimo, apareceram com uma canção que é só uma linha de guitarra (que cumpre também as funções de baixo), entre o mínimo e pouco mais que mínimo, e uma bateria básica. É tão simples e despretensiosa que não devia funcionar, e muito menos devia ser um êxito, mas a sua força reside precisamente nessas características – afinal de contas, as mesmas que fazem do rock’n’roll uma música ainda excitante, tantos anos depois da sua fundação. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, é um dos momentos pop da década, como prova a sua adopção pela massa futebolística. Pedro Rios
Ty Closer
Acompanhado por Maceo, dos suprageniais De La Soul, o rapper britânico Ben Chijioke (a.k.a. Ty) criou um single que é mel. Lançado para promover o seu terceiro longa-duração (com o mesmo nome), o tema tem a coolness de quem acaba de dar um mergulho na água morna de uma piscina num dia de calor abrasivo. “Some days I think I’m getting closer, sometimes I think I’m getting closer, somehow I think I’m getting closer”, diz o refrão, e cada vez mais Ty se vai aproximando de um climax que não chega (nem é preciso, fica óptimo assim mesmo). A estrutura rítmica é leve, mas eficaz, abrindo espaço para as letras que vão encaixando com a eficácia de peças Lego. A produção (sóbria, concisa e sofisticada) confirma a máxima “less is more” - às vezes as melhores ideias são as mais simples. Com uma impecável descontração, Ty assina um belíssimo tema onde o hip-hop navega em toda a segurança pelas ondas mais calmas. Nuno Catarino
Vampire Weekend Mansard Roof
Era provavelmente Janeiro de 2008. Os Vampire Weekend ainda não tinham álbum e tinham apenas lançado dois singles em vinil de sete polegadas, mas o burburinho era tanto que a Rough Trade só deixava comprar um por pessoa. Pus a tocar "Mansard Roof" no Mini-Mercado. As pessoas dançaram como não tinham dançado quando, uns meses antes, experimentei "A-Punk" noutro bar. Ricardo Manaia, um dos sócios do bar e DJ de todo o tipo de música de dança e de rua como DJ Manaia, ao ouvir a batida da canção, vira-se para mim e pergunta: "O que é isto? Isto é kuduro. Quero." É essa batida, que dizem existir dentro de todos os africanos, tocada por miúdos brancos com gosto por música erudita, que os mostra como algo diferente do Graceland do Paul Simon, mas que existe exactamente no mesmo contínuo. Por falar nisso, a reacção das pessoas foi mais ou menos a mesma que qualquer faixa desse álbum espoleta. Rodrigo Nogueira
Vincent Gallo Honey Bunny
Além dos inesquecíveis filmes
Buffalo’66 ou
Brown Bunny, marcos absolutos da cinematografia contemporânea, Vincent Gallo tem desenvolvido uma carreira que não tem par nem conhece limites (e há coisas que o homem faz que não lembram ao diabo, como aquela de vender o sémen). E no meio de tudo houve um disco. Estávamos em 2001 e o single “Honey Bunny” antecipava o álbum
When (saído pela improvável Warp), conjunto de canções mal desenhadas, frágeis e intensamente doces. Irresistivelmente açucarada e a pingar lamechice por todos os cantos, “Honey Bunny” é a canção onde o songwriter mais expõe a sua delicadeza, é a canção romântica perfeita para aqueles que não conduzem carros com mudanças porque só estão habituados a guiar Cadillacs, é a canção que qualquer Christina Ricci oxigenada deveria ouvir num motel de beira de estrada por volta das duas e meia da manhã.
Nuno Catarino
Yeah Yeah Yeahs Maps
Em 2003, com tanta submissão ao pós-punk e revivalismos vários, os Yeah Yeah Yeahs apareceram como uma brisa fresca numa travessia pelo deserto; e “Maps”, como uma canção incrivelmente honesta e contra-corrente, demasiado simples para ser verdade. Já tínhamos levado na cara com a brutalidade dos EPs Yeah Yeah Yeahs e Macine - sobretudo em “Art Star” –, o que desconhecíamos era este lado delicado e terno de Karen O e companhia. Há muito mais por onde celebrar em Fever to Tell, o disco de estreia, mas “Maps” é de uma elevação diferente; estas guitarras reluzentes e fúria contida deixam cicatrizes muito facilmente. Escrita sobre o relacionamento entre Karen O e Angus Andrew (dos Liars), “Maps” conseguiu a proeza de obter o galardão de melhor canção alternativa de amor de sempre, atribuído pelo NME. Catalogações à parte, esta canção é de deixar as pedras da calçada alagadas de lágrimas doces. André Gomes
04/09/2009