América do Avesso II - Segunda vistoria do underground (ou lá perto) que vai chegando da América do Norte.
· 31 Out 2006 · 08:00 ·
© Teresa Ribeiro

Dynasty Handbag Foo Foo Yik Yikr
2006

Lovepump United

Quando o estabelecimento de aparato visual constitui prioridade para um (suposto) músico, raramente se equivalem as sensações que proporcionam o desempenho ao vivo e a escuta em disco. Eis um daqueles casos peculiares em que o álbum físico serve como souvenir de uma experiência, muito mais do que um conjunto de exercícios musicais proporcionais a audições sucessivas e posterior familiarização. Para quem não testemunhou in-loco o debochado cabaret que Dynasty Handbag trouxe atrelado aos recomendáveis e electrificantes Numbers, aquando de passagem pela ZDB, Clinic e Club Kitten, Foo Foo Yik Yik assemelha-se a um jogo de cabra-cega onde o desconhecedor fica limitado a um néon berrante e esborratado por electrónica de reduzida fidelidade - sintetizadores e drum machines em decomposição técnica -, falsete espalhafatoso e uma elegância freak inversa à que exibem as modelos em trajes de alta costura.

E embora seja isso suficiente para manter atiçada a curiosidade, durante a atrofiada sintonia mantida durante meia-hora, o talento de Jibz Cameron, a senhora Dynasty Handbag, escasseia quando toca a equilibrar as programações toscas com uma base de canção tantas vezes estruturalmente insuficiente – ainda assim, pontos de mérito para a explosão de confettis que detona a certa altura “Chinese Imigrantâ€. O risco aumenta com uma "Breakup day" que obriga ao uso de auscultadores quando consumido numa vizinhança mais pudica. Fica a ideia de que, na confecção deste seu debute, a bizarra californiana terá sido mais ansiosa que artisticamente zelosa. Foo Foo Yik Yik impele ao primeiro passo rumo a um dos seus concertos e fica-se por aí.

Dmonstrations Night Trrors, Schock!
2006

Gold Standard Laboratories

Antes de se lhe conhecer a actualização que impõem os Dmonstrations, vale a pena relembrar as regras do verdadeiro circle pit de hardcore velha escola. Esse que deve girar no sentido do relógio para gerar positividade – movimente-se em sentido inverso e gera ódio e ruptura entre os miúdos. Esse que obriga a que os primeiros a perderem desequilíbrio sejam reintegrados na roda-viva com a ajuda dos outros. Tendo como regra de ouro aquela que, sem ser nomeada, afasta para o centro não ocupado do circulo quem quiser pontapear e esmurrar o ar à sua volta. A tradição, porém, renova-se permanentemente no que diz respeito ao hardcore e punk. O trio Dmonstrations provem de duas localidades que, por influência de uma urbanidade violenta, haveriam de intoxicar ambos os géneros. Refiro-me ao Sul da Califórnia na iminência do colapso e à imensa Tóquio que desintegra o que assimila para, logo depois, lhe conferir uma forma inédita mais abstracta.

Assim sendo, o circle pit, que, energicamente, lançam em rodopio convulso estes Dmonstrations, encontra o habitual andamento normalizado quebrado por paragens súbitas, o seu amealhar cinético interrompido por riffs que deturpam por completo a ordeira estruturação de um perfuração agro-musical de 2 minutos, que, perante tal desorientação, passa a ser apenas a soma do que tomba a partir das colisões rítmicas e vagamente melódicas que proporciona Night Trrors. Schock!. No epicentro de tudo isto e como soberano pistoleiro desta cobóiada, o japonês Tetsunori Tawaraya, guitarrista, vocalista e principal figura do trio, derrete-se desesperadamente em falsetes sobrenaturais – projectados visualmente em esgares cartoonescos – e numa berraria que é cúmplice do histerismo na dizimação completa do ouvido desprevenido. Além disso, Night Trrors. Schok! comporta o esboço de um conceito que, tematicamente, o compara ao diário demente de uma alma insone que evita a todo o custo adormecer de novo, por temer as visões horrorosa que possa vir a confrontar. Neste cenário específico, quase parece Tetsunori Tawaraya um Freddy Krueger de dupla nacionalidade e Night Trrors. Schock! um pesadelo que atenua a fronteira entre a América que nos querem vender e a outra que em espiral se precipita a passos largos.

31 Knots Talk Like Blood
2005

Own Records / Polyvinyl / AnAnAnA

Frise-se de antemão a perspicácia dos 31 Knots na selecção de brilhantes colaboradores-chave para a produção e engenharia dos seus discos. Ninguém sai perder ao associar-se criativamente aos Deerhoof, uma das mais desenvencilhadas instituições musicais no activo, e os efeitos milagrosos de tal aliança sentem-se transparentemente a uns 31 Knots que, desde 2005, contam com a bateria de um Jay Pellicci que – precisamente e preciosamente - esteve presente, enquanto engenheiro de som, nas sessões que geraram os obrigatórios Reveille, Apple O’ e Milk Man. Deduz-se a partir daí que a mestria de Greg Saunier no âmbito da engenharia de som tenha facilitado uma iluminação mútua e podemos apenas antever os resultados fabulosos que podem estar reservados para um próximo disco de 31 Knots, The Days and Nights of Everything Anywhere, que o próprio baterista dos Deerhoof misturou. Contudo, a hora reclama por um terceiro e imaginativamente farto Talk Like Blood, que, embora denuncie em demasiadas ocasiões a “pesca†de um single de potencial radiofónico, vale surpreendentemente por um produção de calibre superior e pelo volume positivamente absurdo de métodos invulgares aplicados à forma de um rock, cuja essência sanguínea é a única componente a resistir a todas as transformações.

E assim que a mutação exige sacrifícios, o primeiro valor a evaporar-se é a capacidade de contenção – a boémia que Brooklyn mantém sob moderada luz avermelhada passa a ser esventrada pela facção de Portland que a força a verter o sangue do título. Sobra sofisticação a rodos, que serve também de pau para toda a obra. Nomeadamente, quando intervém num inebriado reggae citadino – “Hearsay†– em que a subterrânea batalha rítmica dispõe do momento certo para colocar em evidência os seus executantes.
Esta soa a uma daquelas faixas que os Maroon 5 nunca se atreveriam a compor por força do perigo que constitui o seu final de guitarras em apoteose. Depois de, em escassos minutos, firmar os seus créditos catchy, Talk Like Blood dispõem de tempo mais que suficiente para ir a todas e obter resultados surpreendentes em cada uma dessas investidas: seja na apropriação lisonjeira do mais sincero EMO da Saddle Creek em “Chain Reaction†(que conhece picos vocais na escala total do disco), narcisicamente debruçado sobre o umbigo da sua própria elegância samplada logo no início do intermédio “Interlude†ou generosamente balanceado para um power-rock que aproveita de forma improvável o piano febril em “Proxy and Dominionâ€. Por essas e por outras, perdoa-se até a sede de fama que demonstra Talk Like Blood. A quantidade e eficaz qualidade da pólvora que armazena este terceiro álbum deixa a ideia de que será apenas uma questão de tempo até estes 31 Knots desatarem a cumprir rodagens sucessivas nas frequências hertzianas por esse mundo fora.

The Mall Emergency at the Everyday
2006
Secretariat Records

Os contornos logísticos de Emergency at the Everyday obrigam a retomar o fio solto ao disco anterior e relembrar a entrega de Jay Pellicci no que respeita ao esgotamento de soluções para uma mesma base formular. Neste caso – e Jay gravou este disco com o irmão Ian -, a incessante exploração de métodos inéditos (diria mesmo futuristas) que garantam ao hardcore mais arty a certeza de que não resvala para a habitual saturação que o condiciona. O ponto de partida para o sonho californiano encontra-se à distância monetária de 400 dólares pelo aluguer de estúdio, acrescidos das duas centenas de dólares que solicita por um dia de trabalho o cada vez mais visível Jay Pellicci (a despesa não inclui os préstimos de Ian Pellicci que o acompanha na maioria dos biscates). Estes Mall deram por bem empregue o dinheiro gasto na contratação de ambos e Emergency at the Everyday resulta em pontual desencontro entre o hardcore e a sua masculinidade, abrindo assim vaga para uma excentricidade lunática que faz com que este se pareça o disco que elaborou na urgência do momento um trio que, a certa altura, se viu projectado em órbita num satélite de dimensões mínimas e internamente aquecido até aos limites do desconforto.

Daí que Emergency at the Everyday se bifurque em momentos de ebulição nervosa – os de adaptação a condições atmosféricas insuportáveis que coincidem com o uso mais violento da guitarra – e outros de ponderação gravitante que favorecem a aparição coadjuvante e pacificadora de teclados Casio mais acriançados que serenam os contrapontos mais ríspidos da fabulosa “Grand Canyon†ou de “Advantage Outâ€. Vezes há em que os Mall quase soam a uns Liars aprisionados num processador Amstrad – “Friends and Family†oferece sustento a essa comparação. Sustento esse que, aliás, parece submisso a permanente “tremideira†no decorrer de um disco que acaba por ser a procura de si mesmo – representação musical da metamorfose que sofre mais uma daquelas bandas de ramificação hardcore inconformada com as chagas do género. Emergency at the Everyday poderá vir a merecer renovada leitura, assim que os Mall se decidirem a regressar a terra firme ou a definitiva permanência pelo plano sideral do equipamento Casio vintage. Por agora, surte apenas o impacto de mera curiosidade.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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