Room 40 - Quarto com vista para o amanhã
· 22 Ago 2006 · 08:00 ·

Fazendo jus à reputação praticamente unânime de que goza, a célebre revista Wire não passou ao lado do quinto aniversário cumprido por uma das mais excitantes labels a operar actualmente na Austrália: a Room 40, gerida pelo multifacetado Lawrence English a par de outros projectos pessoais e imensas colaborações com músicos da sua esfera. Como é habitual, em anexo à publicação que trazia na capa Tom Verlaine – a força maior dos Television – encontrava-se então um tapper (vulgo: sampler) exclusivamente dedicado à Room 40. Esse que, em jeito de celebração, revisitava o que de mais exemplificativo pudesse ser extraído ao catálogo dos últimos cinco anos. Pois se em 2004 Lawrence English havia reunido na compilação Melatonin uma série de exercícios debruçados sobre a influência do som no sono, na sofisticada mixtape comemorativa inclui apenas pontos altos que dela fazem um sonho.

Quase como se tivessem sido originalmente talhados para a justaposição que encontram na compilação, convivem sem discrepâncias notoriedades da música experimental Australiana (Oren Ambarchi e Chris Abrahms dos tântricos Necks), nomes reconhecidos internacionalmente (DJ Olive e Tujiko Noriko) e outros tantos talentos que a Room 40 tratou de exportar e, com isso, obter excelentes resultados (caso de John Chantler e do genial veterano Zane Trow). Sem nunca esbarrar em dogmas ou fórmulas castrantes, o catálogo da label de Brisbane revela-se coincidentemente capaz de surpreender pela diversidade e, em simultâneo, corresponder a uma linearidade matemática (cuja solidez muito se deve também ao alto padrão de qualidade) – alternando entre milagrosos tratados ambient (For Those Who Hear Actual Voices do citado Zane Trow e os dois colossos Buoy e Sleep assinados por Olive), cativantes documentos de auroras criativas e tudo o resto que ainda padece de categorização exacta. De seguida, submetem-se à lupa três alianças cinestésicas que surtem resultados variados. Tão variados quanto o multi-colorido rasto sónico que vai deixando a Room 40 à medida que se aproxima dos 40 lançamentos (metade deles normais e a outra metade respeitante a edições limitadas).


ROBIN FOX & CLAYTON THOMAS
Substation
Room 40
2006

Perante os factores que deram origem a Substation, podia-se até partir do princípio que esta seria mais uma daquelas colaborações que, aos 15 minutos de duração, acusam um penoso e imenso desgaste quase sempre agravado por um par de criadores dedicados a um delírio narcísico que invariavelmente resulta em vazio. Nada mais errado. Robin Fox e Clayton Thomas surgem como improvisadores reconhecidos no meio Australiano e a química por ambos obtida é de incalculável alcance – abrangendo com equivalente magnificência alguns monumentos abrasivos e outros que padecem de perscrutação atenta . Neste caso, o primeiro ocupou-se do processamento ao vivo dos sons que produz o segundo a partir de um imaginativo e uso atribuído a um contra-baixo (a que ajuda a experiência do mesmo em jazz) e objectos vários.

Uma insuspeita avalanche espreita a cada instante. Em “Shuffle”, os sons incisivos que produz o contra-baixo - visceralmente abusado - degladiam-se em cacofonia crescente e, a meio-caminho da ascensão, esbarram num groove tentacular de aspecto alienígena que é coisa de deixar o cérebro em ebulição. O groove possível quando a manipulação de Robin Fox é impiedosamente desconstrutivista e incapaz de satisfazer a mínima necessidade de ortodoxia. "Shuffle", tal como outros movimentos em Substation, move-se por estilhaços de suspense Bernard Herrmann. Suspense esse que ganha um uso impróprio em “Dust on the Diodes” ao manter de pernas para o ar, durante quase 28 minutos, uma centopeia de sons perfurantes que produz o contra-baixo. Entende-se que o imponente "Dust on the Diodes" queira arrastar alguma sanidade com os detritos que verte para um ralo sem fundo, mas também parece que podia cumprir a sua missão em metade do tempo que perde. Nem todos os dias se sacrificará meia-hora a um exercício deste calibre. Contudo e porque em contra-ponto a esse “bicho” tem um “Between Downpours” magneticamente lower-case, este será, muito provavelmente, o mais triunfante dos três lançamentos aqui expostos.

FRIEDL & VORFELD
Pech
Room 40
2006

Tal como sugere o conjunto de linhas esbatidas que serve ao seu design horizontal, Pech é – em grande parte - um gerador de alternados rastos sónicos a que os sentidos seguem a pista como um detective hipnotizado por uma elegância impossível ser adjectivada ou definida por imagens. A dupla alemã Reinhold Friedl (manipulador de piano a partir do seu interior adulterado) e Michael Vorfeld (vanguardista dedicado a precursão e instrumentos de cordas) opera subversivamente um tratamento laboratorial da ressonância (que assume todo o tipo de formas e feitos no movimento “Pech”), para, logo que a percepção se encontre dormente, inundá-la de infiltradas texturas que se vão insuflando ao ponto de se tornarem indomesticáveis. Torna-se partir daí árduo colocar freio à vertiginosa espiral de sons superficialmente lancinantes em que “Pech” mergulha sem a mínima hipótese de retomar ao ponto de partida. Depois, “Keks” soa de imediato a fogueira onde as labaredas vão sofrendo uma mutação que as encontra a ganhar uma robustez metalizada logo de início, perdidas e exaustas entre a teia de cordas arranhadas e numa combinação de elementos que - obedientes à decrescente percussão - proporcionam um fade out à chama. Perfeito cessar-fogo. Contudo, Pech peca somente pelo subaproveitamento a que condenou o seu terceiro exercício que volta à exploração de ressonâncias sem aparente novidade face à primeira incursão nesse âmbito.

GREG DAVIS & JEPH JERMAN
Ku

Room 40
2006

A par de Keith Fullerton Whitman, Greg Davis será dos estetas sonoros norte-americanos cuja produtividade dos últimos quatro anos mais flagrantemente tem obrigado a um acompanhamento atento. Extraiu à folk – como que sonhada há três noites – o essencial para dar forma às lindas paisagens flutuantes de Somnia e ainda o ano passado uniu-se a Sébastien Roux para Paquet Surprise que converteu muita gente. Com este currículo, não surpreende que tenha cumprido algumas datas em digressão com o Animal Collective. Por este altura, o nome de Greg Davis já é sinónimo de subtil e mínima manipulação digital aplicada a um corpo denso de elementos orgânicos. Por ocasião de Ku, reincide nessa função e encontra ao seu dispor um montanha maciça e por demais eclética de livres explorações acústicas executadas pelo compatriota Jeph Jerman – a que Davis reconhece um apurado ouvido – na sua quinta em Cottonwood Arizona.

Ku alcança objectivos inéditos enquanto disco lançado pela Room 40: por altura da sua metade já é viável considerá-lo uma das mais atordoantes mostras de aproveitamento sónico que a label até hoje deu a conhecer - uma espécie de mind fuck feroz resultante de uma captação primitiva dos sons que normalmente se esperariam da carpintaria de uma quinta se todas as suas ferramentas se encontrassem envolvidas numa enorme cena de pugilato. O segundo estrato do disco sugere exactamente essa ideia e, virtuosamente, faz um aproveitamento simultâneo das condições meteorológicas turbulentas e efeitos dessas sobre o espaço circunscrito. Escuta-se o tilintar ampliado ao contacto de vidros, o sopro de um vento que torna rugosa a distorção e o ladrar dos cães numa quinta vizinha. Ku funciona quase como uma sinfonia gamelan orquestrada por um fazendeiro esquizofrénico. Como se os ensinamentos do vanguardista francês Luc Ferrari tivessem sido intensificados até um extremo hardcore sem perderem qualquer tempo com a formalidades narrativas. No press-release que o acompanha, Ku surge referenciado como disco pós-concréte. Concretamente falando, sobra a certeza de que Greg Davis continua a acumular estimulantes capítulos ao seu percurso e a suspeita sólida de que Jeph Jerman pode bem vir a surpreender novamente em breve.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros