Top discos angústia adolescente ou pós-adolescente
· 05 Jul 2004 · 08:00 ·

Existe um mito urbano no nosso pequeno país que diz que o pequeno Saúl, intérprete do grande clássico "O Bacalhau quer Alho", está morto. Quase todas as porteiras, empregadas de café ou mulheres da limpeza juram a pés juntos que o cunhado da prima da tia duma amiga leu no jornal que o "Quim Barreiros em ponto pequeno", como lhe chamavam, morreu num horrendo acidente de viação. Nada mais errado. O pequeno Saúl tem agora à volta de 16 anos. Vive na Figueira da Foz, onde tem uma mota e um telemóvel. Ainda gosta da "música popular brejeira" que cantava, mas, como é adolescente, gosta dos Limp Bizkit. Sim, dos Limp Bizkit. Como cantava Ben Folds, no seu single de estreia a solo, "Rockin' the Suburbs", "Y'all don't know what it's like / being male, middle class and white". Exactamente por isso, milhares e milhares de adolescentes compram e vibram com o que diz Fred Durst. Ele tem um boné e diz "yo" e "fuck", logo pode ser idolatrado e a música que faz pode ser usada para ajudar nos momentos mais difíceis da adolescência. O pequeno Saúl encontra aqui uma maneira de canalizar as suas frustrações.
Nos nossos dias também temos estrelas adolescentes como Hilary Duff ou Avril Lavigne, que ajudam as adolescentes a ultrapassar os maus momentos. Mas estas cresceram com ordenados milionários. Se há coisa que não conhecem é uma adolescência normal.

O que é que aconteceu àqueles com quem todos os outros miúdos gozavam? Que se fartavam de levar porrada? Alguns deles cresceram, pegaram nas guitarras e começaram a escrever canções. E aí vingaram-se dos outros, deixando um aviso para todos os adolescentes que vieram depois. E só aí é que começaram os ordenados milionários, por isso é que eles sabem do que falam. Pelo caminho, alguns discos conseguiram juntar tudo aquilo que é preciso para sobreviver à adolescência. São os que aparecem nesta lista.
Para além do saltar na cama a tocar air guitar ao som dos solos de Angus Young nos AC/DC, de Eddie Van Halen nos Van Halen ou de Ace Frehley nos KISS, há sentimentos. De revolta, de desespero, de angústia, de medo, de tudo e tudo e tudo. Tens acne, vestes-te mal, a miúda do lado não gosta de ti dessa maneira, prefere dar voltas no carro topo de gama daquele tipo mais velho, enquanto que tu nem tens idade para ter carta, e quando tiveres estás condenado a usar a Renault 4L que o teu tio tão simpático te vai emprestar, os teus amigos acham-te um chato. Os teus pais meteram-te de castigo. Sentes que não há nada a fazer, que estás tramado. É para ti que são estes discos. Enfias-te no quarto a ouvi-los e, de repente, estás noutro mundo. Aceitam-te tal como és, afinal até gostam de ti. Não és assim tão má pessoa. Um dia isto vai passar. Talvez.

Nerf Herder How to Meet Girls
2000
Honest Don's

Sim, os Nerf Herder são estúpidos. E juvenis. E fizeram o tema da conhecida série Buffy, Caçadora de Vampiros. E este disco foi lançado na Honest Don's, subsidiária da Fat Wreck Chords. Mas isso não interessa. "How to meet Girls" é pegar nos Weezer e torná-los ainda mais pop-punk. Mas bem. E de forma divertida. Com um nome retirado da trilogia Star Wars, dá-nos vontade de pegar no telefone e pedir emprestado o manual de instruções do Dungeons & Dragons ou as cartas de Magic: The Gathering àquele tipo estranho que andava lá na escola e tinha sempre coisas dessas debaixo dos braços. Ou de, pelo menos, ir à convenção de fãs do Star Wars mais próxima ver se alguém nos dá umas dicas.

Pulp Different Class
1995
Polygram

Jarvis Cocker já tinha ultrapassado a barreira dos trinta. A brit-pop estava no seu auge. Mas as letras de Different Class mostram-nos um cenário pós-adolescente em que se sai do liceu, da universidade, e não há nada para fazer. E ainda por cima é-se diferente do resto do mundo. Celebrando a diferença, "We don't look the same as you / we don't do the things you do / but we live round here too", em "Mis-Shapes", ou cantando o não ter nada para fazer, "And we'd drink and dance and screw / 'cuz there's nothing else to do", em "Common People", os Pulp transformam este disco num dos maiores de toda a brit-pop. Esqueçam os Blur, os Oasis, e tudo o resto por um momento.

Descendents I don't Wanna Grow Up
1985
SST

No punk californiano havia várias bandas. Black Flag, Dead Kennedys, muitos outros. Enquanto uns se preocupavam em dizer mal da sociedade, da política e disto e daquilo, os Descendents queriam divertir-se, esquecer os problemas (e todos os tipos populares lá do sítio que gozavam com eles). Aliás, esqueçam o punk, este é um magnífico disco de power pop. "I don't wanna grow up", os Descendents não queriam crescer. Crescer fazia mal, os adultos eram uns chatos. "You know I'm a pervert / 'coz I want it all of the time", em "Pervert", mostra tudo. Para tornar este disco melhor, só mesmo o hino "I'm not a Loser". De resto, é o disco onde a sensibilidade pop dos Descendents e o seu espírito adolescente estão mais patentes.

Fountains of Wayne Utopia Parkway
1999
Atlantic

Podem acusá-los de falta de profundidade emocional, mas Adam Schlesinger e Chris Collingwood são dos melhores escritores de canções pop do nosso tempo. Neste disco, com pérolas como o próprio "Utopia Parkway" ou "Denise", fica tudo provado. "Prom Theme" é o ponto alto, sendo que "We'll grow old and lose our hair / it's all downhill from there diz tudo na perfeição. Antes de "Welcome Interstate Managers" e "Stacey's Mom", o tema que em 2004 lhes trouxe o sucesso há muito esperado, houve Utopia Parkway. E ainda bem.

Belle & Sebastian Tigermilk
1996
Electric Honey

Stuart Murdoch passou que tempos em Glasgow à procura duma banda com quem gravar isto. Em 1996 entrou numa sala pequena, com um pequeno gravador e a banda que conseguiu arranjar. O resultado foi Tigermilk. Desde temas como "Expectations", sobre uma rapariga que os colegas acham estranha por fazer esculturas em barro dos membros dos Velvet Underground, em tamanho real, ou como "She's Losing It", sobre uma rapariga que é violada, até "We rule the School", o espírito liceal está todo lá. Stuart Murdoch disse em entrevistas que este é o disco mais puro dos Belle & Sebastian, sendo impossível reproduzir o ambiente em que foi gravado em estúdio. "I don't love anyone" é uma revolta soberba, "Electronic Renaissance" antecedeu em alguns anos isso mesmo. Pode-se odiá-los ou adorá-los (quase ninguém fica no meio), mas o mérito deste disco é inegável.

The Feelies Crazy Rhythms
1980
Stiff

O ano era 1980. Usar óculos e vestir-se de maneira esquisita não era nada fixe. Naquele período em que a new wave ainda não tinha chegado totalmente, e ainda nem toda a gente tinha recuperado do punk, os Feelies apareceram. "The boy with the perpetual nervousness" diz tudo. A imagem da capa também. Podiam ser quaisquer pessoas, mas não eram. Eram os Feelies, duma qualquer garagem em Nova Jérsia para a cena da baixa nova-iorquina. "Revenge of the Nerds" só veio em 1984, foi preciso coragem para aparecer assim antes disso. E os Feelies tiveram-na. Ritmos loucos é o que aquilo era, qualquer rapaz nervoso que tivesse a sorte de apanhar este disco aquando do seu lançamento seria indubitavelmente apanhado pelos pais a dançar ao som dele, mesmo não sabendo como fazê-lo.

Ornatos Violeta Cão
1997
Polygram

Os Ornatos Violeta já existiam há uns quantos anos quando lançaram, em 1997, o seu disco de estreia. Mas isto não anula o facto de termos um álbum pejado de adolescência: relações falhadas, traições, referências onanistas e falta de compatibilidade com a monogamia. Manuel Cruz canta tudo isso aqui, em letras que fazem dele um dos melhores letristas portugueses. "Pornografia é vício são / mas fique em Platão / eu sou o rei masturbador / eu sou um céptico a falar / mas se a falar de amor / eu julgo ter razão" é apenas um exemplo. Nem mesmo as escolhas menos felizes em termos de produção feitas por Mário Barreiros conseguem tirar o poder deste disco. A maqueta de estreia a solo de Nuno Prata, ex-baixista, Nuno, Nico, também expressa bem o sentimento de desespero, em canções como "Não deixes de querer fugir" ou "Nada é tão mau". Este é o único disco nacional do top, não havia espaço nem para os Super Teen nem para a banda sonora de Morangos com Açúcar. Fica para a próxima.

Elvis Costello My Aim is True
1977
Columbia

Muito já foi dito sobre My aim is True, o disco de estreia de Elvis Costello. E, basicamente, tudo deve ser verdade. Diz-se que é dos melhores discos de estreia de sempre. E é. Muito antes dos óculos de sol cor-de-laranja, da banda sonora de Notting Hill, do casamento com Diana Krall ou mesmo do anterior com Cait O'Riordan dos Pogues - banda que Elvis muito ajudou -, o disco de estreia do inglês foi, muito provavelmente, o primeiro disco a trazer realmente as influências punk para a música verdadeiramente pop. "Allison" ou "Watching the Detectives" são apenas exemplos de todo o poder do álbum. Aqui, Elvis ainda era um jovem, a sua voz ainda não tinha chegado àquilo que é hoje, mas toda a crueza faz-nos esquecer isso. As canções ao vivo, hoje em dia, apenas com Costello e Steve Nieve, o seu pianista de sempre, tornam-se mais sofisticadas, mas estão melhor aqui, no seu estado puro e bruto. Óculos de massa preta grossos, roupa esquisita e estar chateado com toda a gente fazem de My aim is True o disco importantíssimo que é.

Weezer Blue Album
1994
Geffen

Desta feita o ano era 1994. Usar óculos e vestir-se de maneira esquisita continuava a não ser fixe. Mas este disco veio mudar tudo. "Buddy Holly" e o estupendo vídeo realizado por Spike Jonze ajudaram a que Blue Album tenha sido um sucesso. Se no novo milénio o visual nerd é considerado chic, Rivers Cuomo é o responsavel. Apesar de Pinkerton ser emocional, mais maduro, coeso, e com mais referências onanistas, Weezer - ou como os fãs gostam de chamar-lhe, Blue Album - é onde Rivers se vinga de todos aqueles que alguma vez gozaram com ele na escola. Repleto de hinos como "The world has turned and left me here", "In the Garage" ou "Only in dreams", onde se nota o isolamento e desespero, Blue Album é um disco de estreia sem pontos fracos. Misturar a raiva pós-punk dos Pixies com os solos cheesy de todo o hair metal da década de 80, com referências aos KISS, pode agora parecer banal, mas os Weezer foram os primeiros. Não há nada mais adolescente que solos foleiros com tapping.

The Smiths The Queen is Dead
1986
Rough Trade

The Queen is Dead é considerado o melhor disco dos Smiths e um dos mais importantes dos anos 80. Um disco perfeito, se é que alguma vez existiu um. As letras de Morrissey ajudam milhares e milhares de adolescentes por todo o mundo, e é aqui que, musical e liricamente, os Smiths estão no seu melhor. "I know it's over" e "Never had no one ever" são canções poderosas, capazes de salvar vidas. É com estas letras que os adolescentes se podem identificar. Morrissey tinha, na altura da gravação deste disco, 26 anos, mas isso não interessa. John Hughes, conhecido realizador de filmes de adolescentes nos anos 80, utiliza em quase todos os seus filmes um tema dos Smiths, e não é por acaso: muitos adolescentes facilmente se identificam com as letras do celibatário Morrissey.

Estes são os discos a que o Pequeno Saúl nunca terá acesso. Não faz mal, tu vais ter. Ele que fique com os Limp Bizkit. Fica grato por isto, porque depois "We'll grow old and lose our hair / it's all downhill from there", e quando te despedirem do quinto emprego consecutivo não há muitos discos que possas ouvir. E não terás propriamente dinheiro para comprá-los.

PS: Saúl Ricardo tem um novo disco. "As bolas do snooker" já saiu pela editora Espacial. Na capa aparece o próprio com cabelo descolorado ao pé de uma mesa de snooker. O rei da música popular brejeira vive.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net

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