Festival Where’s The Love 2006
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
18-20 Mai 2006

O Festival Where’s The Love corporiza o espírito que orienta a Galeria Zé dos Bois, enquanto espaço aberto e promotor de músicas exploratórias. Na segunda edição deste festival aumentou-se a aposta na experimentação, com particular incidência no free jazz: Chris Corsano, Joe Morris (integrado no quarteto de Sei Miguel) e Alan Silva foram os cabeças-de-cartaz de um festival que durante três dias revelou uma saudável variedade de propostas sonoras não-alinhadas.

A primeira noite do festival abriu com os Osso Exótico, formação pioneira da música experimental portuguesa. A sua actuação consistiu num longo drone, que se prolongou por toda a performance, sobre o qual eram pontualmente adicionados pequenos efeitos. Depois desta proposta letárgica entrou o finlandês Tomutonttu. Utilizando uma panóplia de efeitos, construiu sozinho uma muralha de som electrónico em constante crescimento e mutação. A proposta do americano Axolotl não divergiu muito da anterior, mas somou sons de instrumentos tocados/tratados em tempo real - houve ainda uma convidada que trabalhou no acompanhamento vocal, numa ligação que resultou interessante. Mas foi para o fim da noite que ficou guardado o melhor. O baterista Chris Corsano fez a festa sozinho, apoiado no seu kit de bateria e demais utensílios. Mais do que uma simples demonstração de virtuosismo – e em nada fez lembrar alguns solos chatos típicos do jazz – demonstrou como fazer da bateria um instrumento de primeiríssima linha. Utilizando um leque de técnicas e ideias singulares, Corsano entregou-se à bateria com toda a alma - a intensidade investida pelo músico foi total. Percebe-se bem a razão que leva gigantes como Joe McPhee, Paul Flaherty ou Evan Parker a querer colaborar com este baterista com cara de miúdo. O público (e nem todo era dado a experimentações free) foi completamente conquistado por este concerto fabuloso.

Chris Corsano © Pedro Guimarães

O segundo dia abriu com os Blood Stereo, inicialmente previstos para actuar mais tarde. O projecto do pioneiro do underground britânico Dylan Nyoukis apresentou uma proposta relativamente curta assente em manipulação electrónica muito física. Continuou Manuel Mota, numa actuação a solo. O press release anunciava-o como “Wes Montgomery a fazer covers de Borbetomagus” e a imagem não podia ser mais feliz; à ideia clássica de virtuosismo do jazz, retire-se a noção de harmonia e desconstrua-se a melodia: em constante exploração das possibilidades do instrumento, o guitarrista português fabrica uma sequência de notas e sons que funciona como um vasto tecido de pontas soltas. Pela guitarra eléctrica passou um carrossel de sugestões e direcções, melodias em invenção permanente, num exercício quase lúdico - não será despropositado anunciar que o espírito de Derek Bailey passou por aqui. De seguida o duo americano The Skaters conquistou o público com uma dose bruta de noise electrónico - uma das propostas mais extremas e mais aplaudidas do festival. O fecho da segunda noite esteve a cargo do Sei Miguel Edge Quartet, que incluiu o convidado especial Joe Morris. O pocket trumpet de Sei Miguel teve a companhia do trombone de Fala Mariam e da percussão de César Burago, mas o principal interesse estava em ver como resultava a colaboração com Morris, músico com um background distinto dos músicos nacionais. O guitarrista americano não se impôs e com humildade adaptou-se à estética do grupo. A música das formações de Sei Miguel é habitualmente pontuada por uma aproximação ao silêncio e, se bem que não revele seguidismo ao reducionismo/lowercase, estará provavelmente a meio caminho entre a improvisação “clássica” e o culto do silêncio. Morris enquadrou-se com facilidade na música do grupo e correspondeu com destreza, intrometendo-se em diálogos entre o trompete e trombone numa serenidade que a percussão esparsa amplificava. No final a união revelou-se proveitosa, justificando plenamente o encontro musical.

A primeira atracção da terceira noite do festival ZDB foi o belga Ignatz. Com o auxílio de uma guitarra acústica e a utilização simultânea de efeitos electrónicos, enveredou por um meio caminho entre folk e electrónica. Seguiu-se o grupo norte-americano Espers, reduzido a metade da formação habitual, mas com o aliciante do convidado Chris Corsano na bateria. Entre violoncelo, guitarra acústica, guitarra eléctrica e teclado, foram criadas belas melodias folk, herdeiras da melhor tradição clássica – e a presença de Corsano não se fez notar, tal como lhe era solicitado. O veterano Alan Silva, que tocou com quase todas as figuras chave do free jazz - de Archie Shepp a Sun Ra, de Sunny Murray a Albert Ayler – apresentou-se a solo, explorando as várias possibilidades do contrabaixo, alternando entre o arco e o pizzicato. Apontando diversas alusões melódicas, o contrabaixo nunca se deixou levar por convencionalismos. Sempre em tom de desafio, não se deixou quedar estático nos ocasionais esboços bebop ou nas subtilezas melódicas, alternando sempre com diversas divagações free. Apesar da dificuldade da proposta solo, o histórico Alan Silva mostrou a sua competência, conseguindo entusiasmar a plateia jovem. A acompanhar a viagem sonora era projectada imagem vídeo trabalhada em tempo real, que ampliava a representação da exploração solitária do contrabaixo. Para fechar o festival ficou a mais caótica das propostas: os portugueses Fish & Sheep incendiaram a Galeria do Bairro Alto com a sua destruição sónica assente em dois elementos, bateria e guitarra eléctrica. A adição de Pedro Gomes (guitarrista dos CAVEIRA) aumentou o alcance da devastação, num festival que depois de várias propostas exploratórias da mais diversa ordem, acabou em rock noise brutal.

Alan Silva © Pedro Guimarães

Durante estes três dias, doze propostas musicais demonstraram o dinamismo da Galeria Zé dos Bois e a sua importância na Lisboa contemporânea, enquanto local aberto a formas musicais menos convencionais. Para além de proporcionar uma dúzia de propostas de validade artística acima da média, este festival ajuda a cimentar uma ideia: pelo cuidado investido na programação, este espaço merece toda a atenção dos melómanos - e não só durante três dias, mas durante o ano todo.

· 18 Mai 2006 · 08:00 ·
Nuno Catarino
(Bodyspace.net / Jazz.pt)

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