Zu
Maus Hábitos, Porto
23 Fev 2004
O jazz pede fumo, olhares discretos, calma e secretismo. O hardcore pede confusão, tumulto e quase violência. Os dois juntos pedem alguma coisa parecida com a fúria contida ou a expressão da apaziguamento. No Maus Hábitos de hoje, não houve fumo ou motim, pelo menos da parte das cinquenta ou sessenta pessoas que se juntaram perto do palco para receber os italianos Zu. Compostos por Massimo Pupillo no baixo, Jacopo Battaglia na bateria e Luca Mai no saxofone alto e barítono, os Zu apresentaram, mais do que apenas jazz ou hardcore, uma fusão alucinante e caótica de ambos. Três camisolas: uma dos Yanquees, uma dos The Stooges e outra da própria banda. O baixista saltava logo no início do concerto como que fazendo antever aquilo que se passaria mais adiante.
Os temas interpretados são viscerais, de estrutura complexa, ásperos. Uma descrição sucinta? O cruzamento dos Hella com Albert Ayler, ou a união do free-jazz com o noise-rock (entenda-se descargas sonoras brutais saídas do baixo de Massimo Pupillo). A estrutura das canções assemelha-se aos Hella ou a uns Lightning Bolt mais contidos, pelas mudanças constantes de ritmo. Todos excelentes músicos com aparente formação de jazz e apuradíssima técnica.
Uma pequena luz azul incidia sobre o saxofonista, que parecia calmo demais para o delírio que fazia transparecer através do seu instrumento. O baixo, zangado, rude e severo, traçava as linhas onde a bateria se cozia. A bateria era cheia de pormenores, e nada, mas nada, acontecia por acaso.
O baterista, depois de descalçar os sapatos, dirige-se à plateia, que estava ainda longe do palco, e pede-lhes que se aproximem mais da banda. Escusado será dizer que os ouvidos ficaram ainda mais propensos a receber as evacuações de distorção disparadas pelo trio. Apresentariam depois aquilo que eles próprios chamaram de "canção de amor", que, como todas as outras, retratava um amor violento e perfeito em desordem. Mais ou menos a meio do concerto, e talvez porque algumas pessoas esperassem que viesse uma diva (leia-se Norah Jones ou Diana Krall) dar voz ao jazz que esperavam ouvir, o público que assistia à actuação ficou reduzido a metade.
Algumas canções consistiam num híbrido de partes mais calmas e contemplativas, onde o baterista demonstrava uma sensibilidade notável, e partes destrutivas, de auto-comiseração. E é na junção destas duas variantes que os Zu fazem a diferença. Na bateria, Jacopo Battaglia batia onde pudesse e, por vezes, a bateria parecia não chegar para satisfazer os seus intentos. A certa altura, e depois de um solo destrutivo na mesma bateria, a banda cria o cenário perfeito para cacofonias várias, em jeito de brincadeira. Fomos transportados do suspense de um filme de Alfred Hitchcock para um episódio da Pantera cor-de-rosa em breves instantes, e tudo com uma simplicidade estonteante.
A banda, com um sentido de humor contagiante, anúnciava aquela que seria a "última canção oficial do concerto", pois diziam que a seguir viriam ainda mais algumas. Mas aquela que realmente fechou o concerto funcionou como uma marcha fúnebre, um cortejo da escuridão. A convite, mais uma vez, dos Hella, Albert Ayler traz ainda mais confusão. A bateria entra em silêncio, depois segue-se o baixo e ambos os músicos ficam cabisbaixos, como que atingidos pelo desalento. Enquanto isso, o sax, tenuamente, formula melodias quase em silêncio. Em seguida, após leve crescendo, o trio oferece a explosão sónica mais forte da noite, que no seu pico mais elevado atingiu proporções esmagadoras. Depois da calma, e quando tudo parecia ter chegado ao fim, o baixista, irado, nervoso, soca o instrumento com uma violência indescritível. Tão depressa se agarra ao baixo, quase que com medo que alguém lho fosse tirar, como o esmurra como se não quisesse ser dominado por ele. O caos tomou, por momentos, controle do palco com a urgência de quem vê o mundo acabar em frente dos seus olhos. Tudo acontece como se locura tivesse tomado conta, por breves instantes dos corpos do trio italiano. O fim do concerto chegava logo depois, sem fumo ainda, mas com o testemunho presente de se ter visto passar um furacão jazz e ninguém ter tido a hipótese de o dominar.
· 23 Fev 2004 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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