MIL – Lisbon International Music Network
Lisbon
4-6 Abr 2018
Ahhh!, o início da Primavera: os primeiros raios de sol, os ataques de alergias, a preocupação constante com uma meteorologia que nunca gostou de ser certa (“levo casaco ou guarda-chuva?”) e, este ano, o MIL, que na sua segunda edição decidiu adiantar serviço e fugir às vésperas do Primavera Sound lá de cima para se colocar confortavelmente na primeira semana de Abril, para gáudio de muitos que não tinham interesse no cartaz do Lisboa Electrónica (e de todos os idiotas que, como nós, adoraram fazer trocadilhos entre o ditado popular do mês e o nome do festival).

Mas ainda que a grande diferença à vista desarmada esteja na calendarização, nota-se uma atitude diferente da edição do ano transacto para esta; justificada a sua pertinência no panorama festivaleiro nacional, o MIL mostrou neste 2018 uma vontade de crescer a todos os níveis. Daí que tenhamos tido mais debates, mais masterclasses, mais concertos, mais modalidades de acesso e mais dias de certame, com a adição de uma opening party, limitada aos portadores de passes mais exclusivos (leia-se: mais caros) e a nós, mongos da imprensa.

E foi nessa mesma festa de abertura, naquilo que se pode chamar o “dia 0” do MIL’18, que pudemos vislumbrar o futuro risonho que espera os Boogarins, anfitriões escolhidos para a noite; não só porque o crescimento da banda em termos criativos é notório (e ficou bem patente com o vídeo de abertura que mostrou os resultados da residência artística no estúdio HAUS), mas sobretudo porque, ao vivo, este é um grupo que tem tudo para se tornar numa potência de calibre mundial.

Pelo menos, foi essa a impressão com que ficámos logo a partir da primeira canção, “6000 Dias (ou Mantra dos 20 Anos)”, e que mantivemos até ao fecho com “Onda Negra”. Ainda que a piada de 2015, de que isto não é mais do que uma variação brasileira dos Tame Impala por alturas do Innerspeaker, se justifique aqui e ali, a forma como a banda injectou nova vida aos já referidos temas (e a outras grandes destaques, como “Foimal” ou o hit “Lucifernandis”) e conseguiu arrancar dos convidados Capitão Fausto, PAUS e The Legendary Tigerman colaborações bastante promissoras e experimentais faz-nos ver aqui um projecto capaz de transcender as limitações da comparação e criar um espaço muito próprio na cena musical internacional.

Mas se no dia 0 conseguimos ter tempo para absorver tudo o que se passou à nossa frente, no primeiro dia “a sério” fomos obrigados a entrar em “modo Mexefest”, com o luxo de concertos completos a ficar reservado para apenas alguns grandes nomes. Daí que só tenhamos conseguido apanhar um bocadinho do show de Iguana Garcia no Viking, que teve a ingrata tarefa de abrir hostilidades num slot cercado pela hora de jantar e pelos Boogarins na porta ao lado (Musicbox). Ainda assim, e apesar da qualidade de som ter deixado um bocado a desejar, conseguimos perceber o apelo à dança que os temas de Cabaret Aleatório (e uma canção inédita com que fomos brindados) ganham ao vivo.

Falámos da porta ao lado e, mesmo correndo o risco de apanhar com cromos repetidos, decidimos espreitar o que estavam lá a fazer os Boogarins. Repetiram-se mesmo alguns cromos (“Foimal” e “Onda Negra”), mas ganharam-se outros que não trocaríamos por nada: “Corredor Polonês” (talvez a nossa canção favorita do seu mas recente disco) e um pot-pourri de todas as partes de "Lá Vem a Morte". Tudo isto recebido com furor por um Musicbox a rebentar pelas costuras, mostrando-nos que aquilo que une os brasileiros ao público nacional é, mais do que uma mera paixão de verão, um autêntico amor transatlântico.

Avisados pela fila que nos dificultou a entrada no concerto de Boogarins, decidimos seguir atempadamente para o Rive Rouge para evitar dissabores e conseguir ver os Ermo dum bom lugar. Porém, quando lá chegámos, vimo-nos surpreendidos por Chapelier Fou, ainda a meio da sua performance. Munido do seu violino e da sua parafernália electrónica, o francês tentou ao máximo cativar-nos e, noutra ocasião, provavelmente teria conseguido. Contudo, a braços com um atraso que nos forçou a alterar boa parte dos planos da noite, confessamos que não ficámos com a melhor disposição para absorver o experimentalismo do artista.

A qualidade do que lhe sucedeu foi, no entanto, mais que suficiente para nos alegrar o espírito; num concerto que seguiu quase à risca o alinhamento do portentoso Lo-Fi Moda (2017), os Ermo mostraram bem o porquê de serem uma das melhores coisas que apareceu na música portuguesa na última década. Os strobes pulsantes, a compenetração de António Costa e Bernardo Barbosa nas suas maquinarias e a inexistência de qualquer tipo de interacção com o público (apenas exacerbada pelas máscaras que agora usam), tudo se juntou para criar um ambiente litúrgico, onde a pop digital fragmentada de temas como “Vem nadar ao mar que enterra”, “ctrl + C ctrl + V” ou “Fa zer vu du” se fez ouvir como palavra divina. Se o Bom Jesus de Braga quiser, serão ainda maiores; nos nossos corações, pelo menos, já são enormes.

De coração cheio e alma renovada, regressamos ao Viking ainda a tempo de ouvir a última canção do set de Nerve, “Subtítulo”. A amostra não foi grande, mas chegou para conseguirmos chegar à conclusão, do fundo da sala apinhada e enquanto absorvíamos a pertinência dum verso tão forte quanto A vida não presta e ninguém merece a tua confiança, de que o rapper tinha público, estatuto e qualidade suficientes para merecer um recinto maior. Fica a dica para ocasiões futuras.

Foi no Europa, porém, que nos apercebemos da maior injustiça da música nacional nos tempos que correm: a notória falta de atenção de que têm sido vítimas os Sampladélicos. O projecto, que junta a componente visual de Tiago Pereira com a musical de Sílvio Rosado, mistura trechos de vídeos d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria com um trabalho de corte e costura de samples desses mesmo vídeos e, afirmamos nós à boca cheia, é bem capaz de ser a consequência lógica, pós-moderna, do trabalho de recolha que o realizador tem feito com a MPAGDP: a dança é uma constante, alguns momentos atingem um experimentalismo que nos traz à cabeça a expressão “Animal Collective com cheiro a enchidos” e, claro, as ditas velhinhas estão sempre ao virar da esquina. E se é verdade que entrámos ali sem grandes expectativas, também o é de que saímos de lá com a certeza de que este é um projecto único, sem par cá dentro nem lá fora. Se justiça houvesse neste mundo, o Europa não teria tido espaço para aguentar o público que este autêntico Giacometti Sound System merecia.

Para fechar a noite, decidimos dar um par de saltinhos pelo Musicbox e pelo Sabotage, para espreitar o que andava a fazer Le Motel e The Zephyr Bones, respectivamente. Do primeiro, pouco temos a dizer: o set electrónico do belga não chegou a prender-nos lá por mais do que um par de minutos. E dos segundos tampouco: ainda que tenhamos ficado até ao final do concerto, com tempo suficiente para ver ali um ligeiro aroma a The Black Lips e a respectiva verve DIY tão típica da malta jovem, não podemos dizer que nos tenha marcado o suficiente para ficar connosco até ao final da viagem de comboio que se seguiu.

No segundo e último dia, vemo-nos mais uma vez forçados a apresentar o jantar, desta feita para conseguir apanhar os últimos minutos do concerto de Joana Guerra no Lounge. O espaço, talvez o mais intimista deste MIL’18, acolheu na perfeição a tempestade sonora que a portuguesa conjurou com a sua voz e com o seu violoncelo, tempestade essa que nos fez sair de lá banhados dum misto de erudição (pois poucas coisas serão tão desafiantes quanto a música da violoncelista), orgulho (por termos na música portuguesa tamanha criatividade) e vergonha (por termos preferido a comida para o corpo à comida para a alma). Nas nossas cabeças ainda rodopiaram algumas comparações parvas entre a música de Guerra e a de outros projectos que, por vergonha, não iremos repetir aqui; embebedem-nos e, quem sabe, talvez a gente as confesse.

Seguimos em direcção ao Sabotage, onde apanhámos os Fugly a meio de um concerto que fez aquilo que os espanhóis The Zephyr Bones não conseguiram na noite anterior: restaurar a nossa fé nesta coisa do rock de garagem. A energia que se sentiu ali impossibilitou-nos de tirar qualquer tipo de notas relativas ao alinhamento, mas os momentos, esses, ficaram bem gravados na memória. Houve sombras de Stooges, houve irreverência punk, houve garrafas de água despejadas na fronha de quem estava na linha da frente e houve, até, um momento em que quase toda a banda levou os seus instrumentos para o meio da plateia (com excepção, por motivos logísticos, do baterista). Mas houve, acima de tudo, a certeza de que aquilo que os Fugly fazem, não sendo nenhuma reinvenção da roda, consegue ser um bálsamo para alma de todos aqueles que, como nós, desesperam pela vitalidade que o rock simples e sem merdas (oi) ainda nos traz.

Saídos do número 16 da Rua de São Paulo, apressamos o passar para ver Luís Severo no Rive Rouge, num concerto que seria, soubemos nós de antemão através das redes sociais, com base na voz e no seu pianinho. Contudo, isso não impediu o artista anteriormente conhecido como Cão da Morte de mostrar a sua guitarra acústica em duas ocasiões: na entrada em palco, com esse pedaço do céu que é “Boa Companhia” a ser tocada sem amplificação, e na recta final do alinhamento, com uma interpretação inproptu de “Amor e Verdade” que, por não ter sido planeada, foi feita com um único microfone para voz e para o instrumento.

No teclado, porém, também saíram umas quantas pérolas: “Cabanas do Bonfim”, repescada ao catálogo dos Flamingos, “Escola”, “Canto Diferente”, “Planície” e, naquele que foi provavelmente o ponto alto do set, “Lamento”, tocada com tanta intensidade que, a certa altura, o microfone decidiu cair do seu apoio, com um estrondo só comparável ao “foda-se!” que saiu da boca do cantautor. E no final de contas, “foda-se!” é bem capaz de ser o melhor resumo que podemos fazer do concerto do nosso puto Luís; o seu crescimento enquanto artista, tanto em estúdio como no paco, é de tal forma assombroso que utilizar um termo como “promessa” para o descrever já pode ser visto como insultuoso. Em boa verdade, “um dos melhores que temos cá no burgo” parece-nos bem mais apropriado.

O que não estará certamente entre os nossos momentos favoritos deste MIL’18 será o atraso de meia hora do concerto de Bruno Pernadas no B.Leza, provocado pelo fim tardio do espectáculo de HHY & The Macumbas que o antecedeu. Perdoem-nos o azedume, até porque não temos nada contra o colectivo portuense, mas não conseguimos deixar de sentir alguma frustração causada pela meia hora perdida e por termos sido obrigados a deitar para o lixo uma parte considerável dos nossos planos para a noite.

Felizmente, o show que a trupe de Pernadas nos trouxe bastou para devolver os sorrisos aos nossos rostos. Do palco, jóias como “Spaceway 70”, “Anywhere in Spacetime”, “Problem Number 6”, “Ahhhhh” ou até mesmo a rara “West Sun” brotaram dos instrumentos e das vozes do pelotão que acompanha o guitarrista e compositor, composto por oito dos mais talentosos instrumentistas da nossa praça, num concerto que, apesar de curto, é bem capaz de ter sido um dos melhores que vimos nos últimos tempos. Da performance à reacção do público, todos os astros se conjugaram para fazer desta viagem pelos caminhos da “fusão pop” de Pernadas e companhia uma experiência inesquecível. Tanto assim foi que saímos do B.Leza convictos de que isto não só não se limita a ser “música para músicos” como deveria ser um dos primeiros cartões-de-visita da espécie humana, para a eventualidade de um encontro imediato de quinto grau.

De volta à terra, vimo-nos regressados ao Sabotage, onde os Aeromoças e Tenistas Russas nos esperavam para o último concerto propriamente dito do nosso roteiro. Naquela cave, a música “liberta de rótulos e formatações” dos brasileiros (que ainda assim, conseguimos apontar como muito próxima duma synthpop com aroma dos trópicos) alcançou com sucesso a árdua tarefa de pôr a dançar as nossas pernas cansadas, num espectáculo onde se destacaram “Canto de Ossanha” (versão do clássico de Vinicius de Moraes e Baden Powell), “Echoes From Colombia” (o single que rodou em todas as playlists de antecipação do festival) e os gritos de “FORA TEMER”, numa referência óbvia à conturbada situação política brasileira.

E no final de contas, o que há mais para dizer sobre este MIL’18? Bem, em primeiro lugar, ficam aqui as notas negativas: num festival que, no seu conceito, nos pede para saltarmos de um lado para o outro, torna-se difícil virar a cabeça e assobiar para o lado com atrasos de meia hora e, para além disso, os problemas logísticos que advêm das várias modalidades de acesso deveriam ter sido trabalhados com mais atenção. No entanto, ainda que estas “dores de crescimento” nos tenham incomodado, saímos desta segunda edição de barriga cheia. Afinal de contas, quando se tem um bom cartaz, bons concertos e, a fechar, Marfox e malta da Príncipe no Musicbox para partir chão até às 6 da manhã, as contas ficam bem fáceis de fazer e o resultado acaba por ser para lá de positivo.
· 25 Abr 2018 · 00:53 ·
João Morais
joao.mvds.morais@outlook.com

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