Milh繭es de Festa
Barcelos
21-24 Jul 2016
24 Julho

Paulo Furtado aka The Legendary Tigerman fechava a época balnear da piscina do Milhões com aquele que foi o DJ set com menos afluência de que há memória na história das águas da mesma. Seria mentira dizer que mil vezes nos cruzámos com dj sets de Paulo Furtado, e ainda que tenha navegado até territórios não tão conotados à sua persona (uns quantos devaneios hip-hop), a escolha de discos, e sim, ouviram-se muitos em vinil, por causa dos graves, recaiu, como se esperava, maioritariamente na fauna por onde o homem tigre normalmente se move: clássicos rock e clássicos blues salpicados com passagens como aquela que nos proporcionou em “Ghost Rider” dos Suicide — que deus te tenha, Alan Vega — logo após “From Her to Eternity” de Nick Cave.

Pese umas passagens meias encavalitadas, não se pode pedir muito melhor de alguém que não vive propriamente para o papel de passador de discos. Competente, portanto, e provavelmente o primeiro DJ na piscina a não envergar uma camisa florida/tropical no set. Tinha era de ser do róque: a wife beater no tronco, as calças quasi-boca de sino nas pernas e os Aviator a cair no nariz impedem que esteja a mentir.

Ficar até ao final do dia na piscina vai obrigatoriamente resultar em decisões apertadas no que ao resto do festival diz respeito: ir até ao palco Taina ouvir o que por lá se passava e apostar na gastronomia local, ou buscar conforto para o estômago num qualquer restaurante da cidade? A escolha recaiu no segundo e foi na companhia de belos espécimes femininos — mas não descurando também as masculinas, incluindo uma estrela rock local — que se perderiam os primeiros concertos da noite enquanto se degustava o prato escolhido: a francesinha. Aconteceu tudo na Vincentina e a bomba calórica estava perfeita. Com um molho a fazer lembrar a textura mais aveludada e a cor mais amarela e menos vermelha das francesinhas de Braga (Taberna Belga, Real Taberna, etc.), podemos dizer que estamos logo na presença de um prato vencedor. É bom que se saiba: há muito que as francesinhas não são melhores no Porto. Afinal nem tudo é melhor lá. Mas quase.

El Guincho já tocava quando finalmente se deu a entrada no recinto. Se com o último álbum, “Hiperasia”, houve uma finta à sonoridade que o caracterizava até então, não será errado dizer que no registo ao vivo a música de Pablo e amigos regressa às origens e à fórmula que foi outrora vencedora, mas que agora se encontra, infelizmente, gasta. Um pouco como o futebol da selecção do seu país natal: demasiado banal e previsível para sair vencedor frente a conjuntos mais frescos.

O público mostrou-se amorfo ao longo de praticamente todo o concerto, ondeando aqui e ali porque realmente os ritmos assim puxam para tal, mas sem o entusiasmo ébrio a que os corpos se entregariam se a actuação tivesse acontecido já com a noite bem estabelecida. Contudo, e também já aqui se previa que tal acontecesse, com o aproximar do final do espectáculo as canções finalmente ganharam corpo e forma. A solarenga "Bombay" daria o mote para os primeiros passos de baile, os sorrisos passavam a estender-se a todo o anfiteatro e a estocada final viria com aquela que Pablo Díaz-Reixa diria ser o hino do festival: "Antillas".

E que não haja dúvidas: "Antillas" é o hino do Milhões. É a canção que todos abraçamos como nossa, naquele maravilhoso 2010 em que El Guincho se deu a conhecer ao público português e este retribuiu da forma acolhedora como só nós sabemos. É a canção que grita verão, grita sol, grita cerveja gelada em esplanadas, grita o crowd-surf, mas sobretudo grita a celebração do amor na comunhão entre público, artistas e promotores da qual o Milhões sempre se caracterizou. E, tal como da primeira vez, o comboinho voltou a circular endiabrado por entre o público. Foi o final ideal para um concerto que, no seu todo, esteve a milhas de atingir a intensidade daquele que se (ou)vira na anterior passagem pelas margens do Cávado.

Sendo eu um não apreciador de metal confesso, especialmente quando este vai para os lados do thrash, talvez nem tanto por não gostar de quem o pratica, mas porque abomino a combinação sapatilhas brancas e ganga integral de quem a este tipo de concertos costuma assistir, era natural que estivesse algo de pé atrás em relação aos Oozing Wound. Posto isto, e apesar de a banda até não querer ver-se a si mesma etiquetada como do thrash metal, Barcelos precisava mesmo de uma banda a tocar “rápido” para a despertar para toda a festa que ainda se iria sentir ao longo da noite.

E o trio de Chicago cumpriu com distinção o seu importante papel na categoria “jarda praticada por cabeludos” que o Milhões de Festa não tem descurado nunca ao longo das edições. Num universo não assim tão distante de uns Gama Bomb no mesmo palco há uns anos, mas a uns anos luz de distância no que à qualidade musical diz respeito — ou não estivessem na Thrill Jockey, sinónimo máximo de “dar tudo” nas suas edições —, os Oozing Wound mostraram como se anima facilmente uma plateia meia dormente. As longas melenas de guitarrista e baixista abanavam de um lado para o outro como manda a lei enquanto o baterista destruía o seu instrumento da melhor maneira que conseguia. O jogo de luzes, também típico deste género de actuações, ajudava à viagem semi-espacial, com silhuetas recortadas entre os amarelos e os azuis e os vermelhos que se fundiam e nelas incidiam. Será exagerado dizer que a estética lembraria o filme Suspiria porque estaria claramente a fazer uma alusão fácil à bonita t-shirt de Goblin com que Zack Weil envergava. Pronto, já exagerei. Por cima da t-shirt manteve-se sempre uma indomável e incontornável Gibson Flying V, ao mesmo tempo a mais incrível e a mais azeiteira das guitarras, combinação sempre vencedora nos temperos de grande parte das bandas de metal.

Voltávamos ao palco grande para aquele que seria provavelmente o momento mais aguardado, não só do dia mas também de todo o festival. Dan Deacon habitua-nos agora à sua presença em solo nacional. Felizmente refira-se, já que depois da passagem por Serralves, em 2009, tardou a voltar. Em boa altura o fez, primeiro para o NOS Primavera Sound 2015 e depois, já neste 2016, numa viagem até aos Açores, para o festival Tremor, também ele com assinatura Lovers & Lollypops. Um pouco à semelhança de El Guincho, também Dan Deacon já teve melhores momentos em estúdio. “America”, editado em 2012, é francamente fraco, e “Gliss Riffer”, lançado no ano passado, não é assim tão uma melhoria quando comparado. Estarei provavelmente a ser injusto, e não me incomoda que me acusem disso, mas quando alguém cria A obra-prima de seu nome “Bromst” haverá sempre uma herança pesada à qual apontar o dedo.

Pouco disto interessa, contudo, quando nos concertos de Dan Deacon o alinhamento é a parte descartável. A festa, essa sim, é o único elemento necessário, e estando nós no festival onde se espera que haja Milhões dela, bem, já estão a perceber onde quero chegar.

Dan Deacon apresenta-se por detrás de um emaranhado de pedais e parafernália electrónica em geral e faz-se acompanhar apenas por uma baterista a dar o necessário toque orgânico às composições. E se o concerto arranca de forma convencional — seja lá o que “forma convencional” fôr quando se fala de Dan Deacon — rapidamente o músico está, qual profeta, a separar as águas e a ordenar que se abra um caminho no meio do público. Somos todos convidados a baixar os corpos — lembram-se de Connan Mockasin em 2012? — enquanto no meio do mar que se abrira há malta a dançar. Quando a torrente de gente se volta unir a festa prossegue em ritmo caótico, crowd surf intenso onde até malta em canadianas se viu, bonecos insufláveis a saltar, as bolas amora da piscina em invasão de palco, e tudo isto ao sabor das camadas de psicadelismo electrónico que Dan Deacon constrói e descontrói por baixo da sua voz de desenho animado. E a figura de Dan Deacon não anda muito longe de um desenho animado: meias amarelas, calções vermelhas e uma camisa de manga curta branca com listas azuis, combinadas com os óculos redondos na cara bolachuda, fazem-nos pensar em Dan Deacon como uma espécie de Dexter hipster — de Dexter’s Lab, entenda-se, não confundir com o psicopata homónimo que todos gostaríamos de ser. E nós, ali em crowdsurf efusivo e contagiante, fomos cobaias na sua experiência laboratorial. Acho que nos saímos bem. O ponto mais alto musicalmente? Obviamente “Feel The Lightning”, muito mais presente nas memórias, e nos pulmões em pleno a que se sentiu, do que as magníficas canções de 2009 que vamos deixando para trás em prol da superioridade da festa que Dan Deacon organiza concerto após concerto. E que concerto que este foi, ele que marcou o final de uma já longa digressão.

Nova viagem até ao emparedado da muralha. Desta vez teríamos o prazer de entrar no inferno de Ho99o9 (não se escreve “The xx” mas lê-se “Horror”), dois demónios em palco secundados por um baterista para a muita aguardada estreia em Portugal. O “hype” à volta desta actuação era gigante. Na falta de uns Death Grips, ou de uns Odd Future não-tão-agressivos-musicalmente-mas-tão-ou-mais-importantes-no-movimento, esta dupla representa aquilo que de melhor o cruzamento entre o rap e o hardcore nos podem trazer, obviamente não só na vertente estúdio, mas sobretudo para a partilha da sua música bem juntinho de quem a ouve. Parte performance, parte música, não há como escapar às comparações óbvias, se já ali atrás foram mencionados os Death Grips por serem o nome mais sonante desta espécie de crossover, o complicado era não associar a presença em palco às das influências herdadas do hardcore, e se mencionar os Bad Brains é demasiado óbvio — por tudo —, não poderia também faltar a colagem ao enorme Henry Rollins no que à presença em palco diz respeito. Se Eaddy é quem assume a função de MC-mor e o faz com uma leveza incomparável, theOGM, por outro lado, é quem assume o papel mais cénico, deslizando ao longo do palco por baixo de um vestido de transparências azuis e vindo até bem perto do público com uma luz por cima das suas longas rastas, numa performance a lembrar aquela incluída no concerto de Mykki Blanco, em 2013, mas sem o genial remix de Cyril Hahn para “Say My Name” das Destiny’s Child. No final do concerto e tal a descarga de adrenalina, muitos tinham apenas na ponta da língua o adjectivo “brutal” para descrever o que ali se havia passado.

Da desilusão Nidia Minaj não rezará certamente a história deste Milhões de Festa: a Príncipe Discos tem nas suas fileiras gente muito talentosa, e ela não será excepção, mas não é definitivamente a passar música pimba que se salva um set. Nada contra, como é óbvio, mas ainda há menos de um mês tinha visto Marfox fazer o mesmo. Umas transições mais suaves para a próxima. Vale?

Ele vive permanentemente em clima de festa, e nas datas do Milhões até está duplamente pois celebra o seu aniversário — Parabéns, Fábio, és o maior! —, como tal não seria de estranhar que a última noite do festival tivesse também um pouco da sua loucura. Falo, claro está, de Homem-Fino/DJ Quesadilla que juntamente com uns quantos amigos proporcionou mais um inusitado momento para a história do festival. Que eu tenha conhecimento, não houve guitarradas em cima de contentores no backstage, mas houve uma boombox séc. XXI (uma gigante coluna bluetooth, portanto) a encerrar os bares e barraquinhas ao som de grandes êxitos da música pop, uns mais melosos que outros, mas todos absolutamente memoráveis pela forma como todos os tinham na ponta da língua. O Milhões também é isto: um grupo de malta que decide fazer a sua própria festa, ao qual se juntam personagens em tronco nu que aparecem do nada para pagar finos (ou copos de vinho a preço de saldo) ao mesmo tempo que malta bem adulta rebola pelo chão de forma visivelmente feliz, para não dizer embriagada, pelo cenário a que vai assistindo. Acontece todos os anos, esperemos que para sempre.

O festival terminaria ao som dos DJs Yeah e com a invasão de palco por parte dos habituées nesse tipo de andanças. Não havia copos à pala no backstage, como em outros festivais, o que é francamente pena, mas às seis da manhã também já era hora de pequeno-almoço com galão e torradas. No after de Barcelinhos.

Até à próxima. Amílcar Rodrigues
· 03 Ago 2016 · 00:58 ·