Cada vez se sente mais o slogan da Casa da MĂşsica – aquele que reza “Tantas mĂşsicas, uma casa” – como uma tirada plena de verdade e legitimidade. Depois de tanta polĂ©mica e longa espera, a Casa da MĂşsica começa a afirmar-se cada vez mais como o espaço que a cidade do Porto necessitava há já muito tempo; um espaço plural, capaz de receber nomes como Matthew Herbert, LCD Soundsystem, Giant Sand, Antony and the Johnsons, American Music Club, Radio 4, entre outros – e nos prĂłximos tempos prevĂŞ-se que a lista aumente e de que maneira. Enquanto isso - e um dia depois de mais um “rasgo” na programação da casa portuense, o concerto dos Cult Of Luna -, Diamanda Galás encheu a Casa da MĂşsica para um concerto sucessor de um outro concerto em 2001 no Hard Club, em Gaia, onde atĂ© foi gravado um tema (“Ain’t No Grave Can Hold My Body Down”) que surge incluĂdo no disco em formato live intitulado La Serpenta Canta. Com alguma surpresa – ou entĂŁo nĂŁo – a Casa da MĂşsica estava cheia para ouvir a autora de Divine Punishment.
© Casa da Música |
O espaço entre o apagar das luzes e a entrada de Diamanda Galás em palco ficou obrigatoriamente marcado na memĂłria do concerto devido a um certo suspense que necessariamente se gera com a entrada em cena da norte-americana, o momento exacto em que se vislumbrou a sua figura. A partir dali tornava-se certo que a celebração da escuridĂŁo, da morte e do sofrimento estariam nas ordens da noite. Sentada sozinha ao piano, Diamanda Galás havia de arrancar com uma versĂŁo de “My World Is Empty Without You” (um original das Supremes), um dos temas revisitados em La Serpenta Canta, um disco surpreendente onde se recuperam alguns standards de blues, jazz e country de outros tempos. AĂ, o seu piano irrompeu imbuĂdo em efeitos estranhos, distorcido, como se o tempo se perdesse naquelas teclas, conforme os relĂłgios que derretiam nas telas de Dali. Ă€ luz da realidade muito prĂłpria de Diamanda Galás – nĂŁo sĂł a forma como interpreta os temas, mas tambĂ©m a maneira como os recebe no seu mundo – Ă© Ăłbvio que essas canções surgem trajadas de novas e misteriosas realidades – despertam dotadas de medo, de apreensĂŁo. A sua voz de tonalidades negras – sobejamente conhecida por ser capaz de alcançar as quatro oitavas – faz-se sentir pela sala, ora narrando os temas mais frequentes da sua carreira, ora adquirindo poderes de outros seres, uivando, exclamando os horrores para que todos possam ouvir. A sua voz Ă©, em ultima análise, extrema (como quase tudo o que a rodeia), confrontacional, possuidora da capacidade de remexer as entranhas. Nem que para isso seja necessário antever a morte antes da chegada da prĂłpria.
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Quando alguĂ©m grita “we love you” da plateia, Diamanda Galás responde com um ohhh satisfeito; quando depois de apresentar a demencial “Baby’s Insane” (um tema de This Sporting Life, um disco gravado lado a lado com John Paul Jones, o mĂtico baixista dos mĂticos Led Zeppelin) alguĂ©m grita “i’m insane”, Diamanda Galás condescende e replica: “I know that”. Foram raras as vezes que Diamanda Galás abriu a boca por uma razĂŁo que nĂŁo fosse a de cantar e sĂł por aĂ já quebrou alguns clichĂ©s. O contacto artista-pĂşblico fez-se de outra forma - fez-se necessariamente atravĂ©s da palavra cantada. Em “I Put a Spell on You” (um tema original de Screamin’ Jay Hawkins), a cantora de San Diego transforma-se em feiticeira do mal para depois soltar gargalhadas demonĂacas como se de uma bruxa se tratasse. No final, a ovação era tal que sĂł ao terceiro encore Ă© que Diamanda Galás, depois de algumas pessoas já terem abandonado a sala, decidiu por termo Ă sua actuação. Mas nĂŁo sem antes aludir de novo Ă morte em “See That My Grave is Kept Clean” (um original de Blind Lemon Jefferson), nĂŁo sem antes bater com alguma violĂŞncia no tampo do piano na sequĂŞncia da frase “have you ever heard the coffin sound?”, nĂŁo sem antes mostrar a sua visĂŁo realista do fim das coisas tal como as conhecemos. Afinal de contas, quem Ă© que quer paninhos quentes, pancadinhas nas costas e filtros da verdade quando se pode ter a realidade madrasta, dura e cruel Ă distancia de uma canção?
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