Festival de Músicas do Mundo de Sines
Sines
28-30 Jul 2005
O free funk e o velho louco albino - o segundo dia

O dia começou às 5 da tarde, na Capela da Misericórdia, onde Hermeto Pascoal abriu o apetite para o seu concerto da noite. Prometia muito, mas não cumpriu tanto quanto se esperava. Os destaques passam por Marc Ribot e pelo já citado brasileiro louco, ainda assim. Foi a primeira noite em que tudo esgotou, se bem que o Castelo não estivesse ainda a rebentar pelas costuras.

Lula Pena

Lula Pena é portuguesa. Mas isso não quer dizer nada. Vê-la ao vivo foi uma das experiências mais claustrofóbicas e penosas de sempre para quem escreve agora estas palavras. Mas a culpa não foi dela. A culpa foi de a terem posto numa capela. Cheia de gente até ao tutano, cheia de gente a sair, cheia de gente a entrar, formava-se uma fila na porta. Cães passeavam por entre o público.
Lula Pena acompanha-se a ela própria à guitarra e vai cantando. Cola-se muito ao fado quanto canta em português de Portugal, o que se torna aborrecido. As suas canções também não são verdadeiras canções, falta ali algo, parecem mais poemas do que canções verdadeiramente trabalhadas. Passa, na mesma canção, de português de Portugal para português do Brasil e para inglês. Há algo de delicioso e divertido quando transforma as suas canções em canções de outrém, como foi o caso de "Do You Really Want to Hurt Me?" dos Culture Club ou de "Pollen", da cantora americana-israelita Mirah (sim, leram bem, não estamos só a inventar porque o Bodyspace é uma webzine indie). Dedilhados alternados com percussão, assobios que se transformam em suspiros...friques no público marcam (mal) o ritmo e quando batem palmas ou fazem gritos índios no meio das palmas. Lula mal pára entre as canções.
No final, há uma ovação em pé para ela, e, visivelmente tocada com a ovação, Lula começa a tremer e tremer. Quase nem consegue respirar, nem sequer cantar. Começa a cantar em francês, com um sorriso de orelha-a-orelha, algo que contrasta com as palavras que canta: "Je suis triste". Mas tudo acaba bem, com um suspiro, com o respirar da artista, frágil e humana.

Marc Ribot & the Young Philadelphians

Nunca existirão, foda-se, palavras suficientes, foda-se, para descrever, foda-se, este concerto do Ribot, foda-se! É por isso que estamos a abusar imenso dos palavrões, foda-se! Marc Ribot é, e será sempre, até morrer, uma lenda viva. Foi membro dos Lounge Lizards, tocou jazz, acompanhou artistas pop como Elvis Costello ou Tom Waits, é judeu e toca com John Zorn, faz música cubana postiça, faz tudo. É um guitarrista extremamente criativo que cola bem em tudo. É óbvio que a fasquia de uma actuação deste senhor estava muito, muito alta. E sabem que mais? Foda-se, suplantou todas as expectativas, foda-se. Do funk ao free jazz, passando pelos blues, pelo rock'n'roll, pela soul, pela música africana, pelo reggae, por campos de basebol, e por explosões de puro barulho, o homem cumpriu e muito.
Entra em palco acompanhado de Anthony Coleman nos teclados, Jamaaladeen Tacuma no baixo e Calvin Weston na bateria. Basicamente, estes Young Philadelphians são músicos de alto gabarito que andaram metidos com gente importante, como o grande Ornette Coleman. Marc Ribot está a usar óculos e tem à sua frente duas folhas com pautas, uma delas tremendamente amarrotada. Entra e a festa começa. Não há um único momento mau, se descontarmos a parte em que o Mini Korg de Anthony Coleman deixou de funcionar e o momento final em que a guitarra de Ribot deixou de ter som. Jamaaladeen Tacuma trouxe o free funk no baixo, com um som de baixo sem qualquer tipo de falhas, e uma técnica não menos boa. Um músico brutal, com linhas de baixo sempre fluídas e brilhantes. Ribot canta, toca riffs de blues e de puro rock’n’roll, sola, vai andando por momentos de abstracção que culminam noutros mais convencionais e bonitos, como se estivesse à procura do som certo, da melodia certa, daquele momento brutal, e finalmente consegue encontrá-los.
"Não posso crer num Deus que não saiba dançar.", dizia Nietzsche. Por aqui dizemos "Não posso crer num Deus que não saiba pôr tudo a dançar". E Ribot sabe. Porque a liberdade também pode ser dançante.

Marc Ribot © Mário Pires (CMS)
Astrid Hadad

Astrid Hadad é uma figura pouco convencional. Veste-se com roupas extravagantes, atira-se (no sentido de sedução) ao público, vai cá atrás mudar de roupa, veste-se de quadros surrealistas, fala da boa vida, da boémia, etc. A música, essa, é convencional até ao tutano. Música mexicana feita de tangos, com bons músicos, mas que nem sempre se aproxima do bom gosto. Ainda assim, consegue divertir o público com as suas ousadias, o seu registo atrevido e as canções que canta. Tem uma boa vez, não haja dúvidas disso, mas ao fim de um certo tempo acaba por aborrecer um pouco. Em disco aproxima-se muito mais de um registo mariachi, com sopros e tudo, o que traria uma outra cor ao espectáculo.

Hermeto Pascoal

O que é que têm em comum Margaret Thatcher e Hermeto Pascoal? Ambos se referem a eles próprios na terceira pessoa. A dama de ferro e o louco barbudo referem-se a eles próprios na terceira pessoa. Horas antes do seu concerto, na Capela da cidade, Hermeto Pascoal transformou aquilo que começara como uma simples sessão de perguntas/respostas numa lição de canto afinado através de um copo-de-água que pôs quatro partes distintas do público a fazer sons e melodias com um xaman louco ("Albino louco", como um dia lhe chamou Miles Davis) a liderar e um espectáculo de percussão vocal e corporal dele e da sua cantora. Manteve-se tolerante para com os que decidiram desrespeitar a sua conversa, já que muita gente fazia barulho dentro da capela, como falar ou não desligar o telemóvel.
Hermeto Pascoal sabe dar um "show" (ler em brasileiro). Tem excelentes músicos. Músicos excepcionais, obviamente, porque se somos Hermeto Pascoal não nos contentamos com pouco. É pena que, num contexto de copos e de divertimento de Verão, não possa ser assim tão bem apreciada. E é pena, também, que os seus famosos instrumentos artesanais e sons pouco convencionais não tenham aparecido muito. Também demos pela falta da sua flauta, que toca com mestria. Ainda assim, alguma percussão peculiar, cow-bells e toda uma onda jazzy fizeram o raio da festa, com o louco como maestro a coordenar tudo. Virava-se para a plateia e pedia que cantassem com ele, repetissem o que ele dizia. A sua cantora, mais lírica do que jazzy, era um pouco limitativa. Ainda assim, fez com que esta cantasse num registo próximo de ópera enquanto punha os músicos todos a fazer algo que nada tinha a ver com isso.
Foi uma junção de músicas diferentes, de estilos diferentes, como o próprio velho louco tinha referido que iria ser na sessão de perguntas e respostas. Sendo um mestre do improviso, não foi estranho Hermeto Pascoal ter terminado o concerto improvisando uma letra sobre como era tão bom estar ali, agradecendo à Câmara Municipal de Sines e a toda aquela festa. Foi uma actuação irrepreensível, mas fica-se sempre com a sensação de que podia ter sido muito melhor...
Hermeto Pascoal © Câmara Municipal de Sines

Ba Cissoko

Ba Cissoko é um grande tocador de kora da Guiné-Conakri. A kora é algo como um parente da harpa, bem mais rudimentar, e com um som menos polido, mas não menos bonito. De vez em quando liga a kora a um pedal e usa distorção. Assim, está feito o kora-rock, para pôr tudo e todos, mais uma vez, a dançar. Bons músicos, percussionistas, tudo irrepreensível. Apenas peca por Portugal ter recebido, exactamente uma semana antes, Toumani Diabaté, acompanhando Ali Farka Touré. Ainda assim, houve tempo para, mais uma vez, friques se sentarem na relva da Av. da Praia tocando djambés ao mesmo tempo (se bem que fora do tempo) que em palco se tocava música. Deplorável.

DJ Mo (DJ set)

DJ Mo é um DJ do Mali que facilmente poria música nas discotecas manhosas, cheias de adeptos do tuning-chunga, de cada santa terreola do país. Uns cânticos e uns ritmos africanos misturados, com péssimo gosto, com batidas house. O povo gostou, mas isso não quer dizer nada.

· 28 Jul 2005 · 08:00 ·
Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
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