Festival Sònar
Barcelona
14-16 Jun 07

2.º DIA
Sonar by Day
Sunn O))) · Clark
Sonar by Night
Beastie Boys · Cornelius · Romantica · Justice · Dizzee Rascal

Merecida justiça e o ténue limiar entre o laptop e um lapdance

Sonar by Day

SUNN O)))
A auxiliar de reportagem, que solicitou o anonimato, referia, após sensivelmente 24 horas passadas sobre o concerto da dupla norte-americana Sunn O))), que a ocasião se assemelhara muito ao grotesco parto imaginário de uma monstruosidade Medieval visionado frame ante frame. Compreende-se a tentativa descrição que pode ser uma das muitas a aplicar à missa negra que conduz o duo que tornou num eufemismo o adjectivo “lento†quando aplicado ao metal de características mais arrastadas. Os Sunn O))) limitam-se a determinar impiedosamente as guitarras como carrascos do aparelho auditivo numa cerimónia maldita em que o sufoco e terror nem sequer necessitam de timing exacto porque prevalecem ininterruptamente durante praticamente uma hora de eclipse total. Como se não bastassem as guitarras suspensas como dentes vampíricos sobre o pescoço, aos Sunn O))) juntou-se uma figura sinistra de nome Attila (seria?) – trajando uma peruca à Keiji Haino e um colete ao estilo de espantalho – que entoava litanias entre o estridente e o uivo desinibido a partir do estômago. Tal adição colocou a prestação dos Sunn O))) a um passo de servir na perfeição como banda-sonora para uma cena de orgia canibal filmada por Dario Argento para posterior inserção no remake de Eyes Wide Shut – De Olhos Bem Fechados de Kubrick. Cena essa a ser exibida frame a frame.

Sunn O))) © Advance Music, S.L.

CLARK
O que seria do Sònar sem assegurar a presença de algumas das figuras do luxuoso catálogo da Warp? Chris Clark (geralmente conhecido apenas pelo sobrenome) cumpre idealmente (quase) todos os requisitos esperados de um músico amadurecido na casa britânica que actualmente abriga os !!! e os Grizzly Bear: sintetiza categoricamente todo o espectro da IDM, evita o óbvio na cadência de bleeps organizados no laptop e, sem qualquer intenção de ultrajar, chega a cometer um pecado drum n’ bass sem que esse deixe de soar actual (impressionante, portanto). Acresce a tudo isso o apurado sentido de Clark no estabelecimento da ponte entre o entusiasmo digital da Warp clássica – com todo o futuro pela frente – e a sua actualidade vivida sob a forma de discos sofisticadamente apontados à difícil tarefa de serem pop, sem deixar de parte a complexidade que evita tornarem-se enfadonhas as escutas sucessivas. De forma a oxigenar os poliritmos pelos quais se foi tornando conhecido o autor de Body Riddle, verificou-se também a presença de um baterista que deixou bem claro que John Stanier dos Battles pode até merecer o título de máquina biónica, mas não sem um desafio à altura.

Sonar by Night

BEASTIE BOYS
O segundo concerto de Beastie Boys que conheceu Barcelona (o primeiro fora o “instrumental†no dia anterior) não diferiu muito do que trouxe os nova-iorquinos até ao palco do Alive!, em Lisboa, seis dias antes. Atendendo a que a apreciação do último consta dos links dispostos em baixo, dedica-se esta entrada aos aspectos que marcaram a diferença e a outros que adquiriram ainda maior saliência no Sònar. A afluência do público foi mais uma vez massiva (ou não fosse tanta a fome). Depois, cedo se repara que MCA se encontra mais energético e nivelado com os dois parceiros de sempre (“Triple Threat†confirma-o). Ad-Rock assume-se um pouco mais histérico nas suas rimas, mas menos incisivo nas farpas humorísticas. O nome de Barcelona merece encaixe numa mão cheia de músicas, a instrumental e nostálgica “Ricky’s Theme†quebra gravemente o ritmo acumulado, “Brass Monkey†é recebida com euforia consensual e “The Maestro†arrebata em definitivo o estatuto de tema mais forte da digressão, nem que seja por ser o que mais equilibradamente combina a vertente instrumental com o hip-hop. Realmente curioso é dar conta de que os Beastie Boys minam o alinhamento com um número de investidas hardcore equivalente às somadas aos dois concertos ocorridos em Lisboa. A receptividade é incondicional e, ao que parece, global. A actual digressão dos Beastie Boys permanecerá armazenada no recanto de memórias predilectas que um dia mais tarde se partilha com os netos.

Beastie Boys © Advance Music, S.L.

CORNELIUS
Cornelius, uma das melhores exportações recentes da pop oriunda do Japão, parece inabalavelmente seguro de que os seus discos são potencialmente clássicos e, por isso, merecedores de serem projectados em formatos vários. Convenientemente, um concerto de Cornelius oferece a preciosa oportunidade de ver, o que era à partida o trabalho isolado de génio maravilhado, desabrochar e adquirir a dimensão maior que lhe confere a banda rock a actuar sob a sua batuta. O que por si só já seria uma mutação interessante de se testemunhar, passa a ser um inesquecível espectáculo audio-visual que faz coincidir a música com os magníficos e coloridos telediscos projectados nos três ecrãs gigantes de um Sònar Park que pasma perante a dinâmica e coolness que demonstra Keigo Oyamada ao revisitar clássicos como “Dropâ€, “Point of View Point†(recuperados a um estupendo Point que não acusa envelhecimento), “Star Fruits Surf Riders†ou “Count Five or Six†(o vitorioso tema que faltou à adaptação da saga Rocky a filme de animação). Alguém que transpira referencialidade no nome que o identifica (aproveitado a um sagaz personagem do Planeta dos Macacos) tratou de deixar bem claro que o Japão e Europa se encontram à distância de um sublime enquadramento pop de fazer transbordar os ouvidos e olhos.

ROMANTICA
É de saudar a iniciativa da organização em diversificar o conteúdo da noite de sexta com a apresentação inesperada de um espectáculo de strip-tease que trouxe até ao Sònar Park a noite semi-nua de Tóquio sob a forma de três bombásticas pin-ups asiáticas que, em currículo, contam já com trabalhos efectuados para a Sony e Taschen (e certamente para outros clientes mais zelosos da sua privacidade). Digamos que a performance pode ser categorizada como uma espécie de Crazy Uma (que significa cavalo / horse em japonês) reduzido à sua forma minimalista: as meninas dançam como operárias ao som de electro-xunga, reproduzem o cenário típico das secretárias assanhadas (com direito a cruzar e Sharon Stonesco descruzar de pernas), despem a farda de freira ao som de “Freedom of Choice†(antecipando a chegada dos Devo). A mulher japonesa vence o feroz campeonato de beleza do Sònar e o espectáculo Romantica serve como a melhor cura para a conjuntivite provocada pelos dias mal dormidos em Barcelona.

Romantica © Advance Music, S.L.

Mais informações úteis e nudez sugestiva aqui: http://www.yokomachikeiko.com e http://www.moodcore.com.

JUSTICE
Justiça seja feita a estes Justice que às costas já têm de carregar a cruz da etiqueta new-rave: a dupla francesa, que muitos já apontam como os herdeiros lógicos do french touch, sabe como manter ao rubro uma multidão de necessitados da tal dose extra-guarnecida de ritmos persistentes na sua perfuração arqueológica de tudo o de mais electrizante se fez no final de 70, alumiado por uma sensibilidade algo megalómana do rock de estádio das décadas seguintes e a religiosidade inerente a isso. Pelo palco passeia-se alguém com uma t-shirt dos Daft Punk e tal facto denuncia tudo o resto que se possa querer saber acerca dos Justice, que ultrapassam sem qualquer pudor a porção vermelha da barra vertical que media a temperatura à noite de sábado. O Sònar conhece o seu cume febril na passagem por “We are Your Friendsâ€, o tema seminal gravado a meias com os Simian (que entretanto acrescentaram Mobile Disco ao nome e também actuaram nessa noite). Depois de crucificados os sentidos é quase impossível a evasão que não por meio da ruptura que chega com o fim da prestação. Estes podem os versículos satânicos de uma bíblia de néon.

Justice © Advance Music, S.L.

DIZZEE RASCAL
É comum a constatação de que o grime que conquista as massas vem já filtrado da pimenta desbocada que o torna inflamável enquanto ainda veicula nas mixtapes que não chegam às mãos de gente bem colocada nas mais influentes rádios da Inglaterra. Pela prematuridade com que ascendeu ao lugar de primeira grande figura internacional do grime, Dizzee Rascal estava condenado a ser apontado como o mercenário que abandonou as ruas em prol do estrelato. O novo Maths + English ajusta contas em relação a essa suspeita e, a julgar pela amostra do álbum dada a conhecer ao Sònar, tudo leva a crer que a essência, fibra e veneno carregado de sotaque (ou o inverso) ainda não abandonaram Dizzee Rascal e o hype man que trouxe para lhe proteger as costas das balas arremessadas pelo DJ. Acabou por ser o público britânico, que normalmente se mantém longe da periferia onde floresce o verdadeiro grime, aquele que maior sincronização manteve com as rimas do rapaz que há muito abandonou o canto onde se encontrava, para agora ser um dos alvos a abater no reino do hip-hop sem maneiras.

· 14 Jun 2007 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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