Diamanda Galás
Centro Cultural de Belém, Lisboa
21 Nov 2006
Por mera coincidência ou imposição dos astros, quis o destino que a celebração do No Music Day (Dia Mundial Sem Música) coincidisse com o regresso a Lisboa daquela a que não se pronuncia o nome trivialmente, Diamanda Galás e todo o imenso pesar que transporta consigo. Planeado muito antes de se encontrar agendada a vinda de Galás até ao Centro Cultural de Belém, a iniciativa das 24 horas totalmente privadas de música partiu do escocês Bill Drummond e assenta na necessidade de reflectir sobre o rumo que toma actualmente o valor em questão – na sua crescente banalização, transposição para o mais prático formato digital e tantas outras perspectivas. A iniciativa apelava a que se fechassem as lojas e a que não se escutasse ou tocasse música em parte alguma.

Embora à partida a ideia tradicional de concerto contrarie as ambições do tal jejum musical, urge acrescentar que presenciar Diamanda Galás, enquanto se manifesta artisticamente, nada tem de quotidiano ou casual enquanto experiência. A solenidade que dominou a circunstância, tal como os avassaladores picos transcendentais verificados, tornam redutor o uso do termo “música” para descrever o que ressoava entre os limites do grande auditório do CCB. Tanto mais quando a tal palavra sempre serviu como insuficiente eufemismo para descrever simplificadamente a actividade de que se ocupa a cantora californiana num plano singular.

Por sua vez, a palavra “singular” serve abrangentemente para projectar toda a irrepetível magnificência que imprimiu Diamanda Galás a uma noite maioritariamente reservada a rendições de músicas impregnadas de tragédia e paixão (muitas vezes, envolvendo as duas) que foram sobrevivendo à gravidade da ampulheta do século XX e actualmente gozam do estatuto de standards, versatilmente aptos a enquadramentos instrumentais diversos - neste caso, simplesmente voz e piano. Esta peculiar gestão temática de reportório – próprio e alheio – mereceu a denominação de Guilty Guilty Guilty, a que basta o título para clarificar que as canções partem da tendência assumida pela culpa na escarificação da alma. Galás opera, com a intensidade própria das divas mais martirizadas (Joana d’ Arc é um paralelo provável), uma permuta idiomática que apenas mantém intacta a sangrenta raiz emotiva da canção e que dessa base parte para improvisos mais delirantes no piano e imolações vocais que, de tão grandiosas, parecem provir de um sofrimento colectivo. Quando se torna indistinguível o limiar a separar o uivo do guincho cortante, a senhora de negro passa a ser o coro das suas próprias entranhas.

De ombros descobertos e aparentemente serena no seu debruçar sobre as teclas do piano, Diamanda Galás submete-se ao lugar do catalizador de sensações tortuosas acumuladas durante cem anos pontuados por um romantismo que não se sucede sem que o sangue verta. Repete, durante as primeiras incursões, um mesmo movimento de anca que denuncia a ambientação ao espaço. Espiritualiza a alternância entre os extremos que podem atingir as notas arrancadas ao piano. Desmistifica o preconceito herético com momentos de devoção mais dócil apontada a um alvo de afecto de improvável alcance. Surge mais ardente e esquizofrenicamente maldita quando canta em italiano e oscila entre vários tons estridentes como quem expurga, uma por uma, as chagas a uma turba suplicante. Sombreia a Torre dos Jerónimos quando – num primeiro final enorme – recorre à chanson française para ditar que esta coisa da vida é só mesmo uma vertigem penosamente demorada. Cede a partilhar escassas palavras de agradecimento quando ainda essas ainda são abafadas pelo volume das ovações. Reacende a admiração dos incondicionais, torna cativos do seu negrume mais uns quantos e convence o estuário do Tejo a trajar de luto em honra das mortes que provocaram as paixões cantadas.
· 21 Nov 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
RELACIONADO / Diamanda Galás